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A Igreja do Diabo
(Machado de Assis)

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Sentido-se humilhado com o papel avulso que exercia há séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. O diabo teve a idéia de fundar uma igreja. ¬ Por que não teria ele a sua igreja? Era o meio mais rápido e eficaz de destruir as outras igrejas. Teria a sua própria missa, os sermões, bulas, novenas e todos os demais aparelhos eclesiásticos. A sua igreja seria única. Em seguida, lembrou-se de ir falar com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo. E rápido, arrancou das sombras para o infinito azul. Chegou aos céus no momento em que Deus recolhia um ancião. O Senhor pergunta-lhe o que ele queria. O diabo então demonstrando bondade pede ao Senhor que primeiro recolha o bom velhinho. O Senhor então com os olhos cheios de doçura pergunta-lhe se sabe o que ele fez. O diabo responde que não, mas certamente aquele seria um dos últimos a procurar o céu. Não tardará muito para que o céu fique semelhante a uma casa vazia. Anunciou que iria fundar uma igreja porque estava cansado da desorganização; era tempo de obter a vitória final e completa. O Senhor respondeu que ouvia a comunicação, porém não a legitimava. O diabo então resolve descer à terra para lançar a pedra fundamental. Quando ia descendo, o Senhor pede que ele diga por que só agora decidiu fundar a igreja. O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo, e disse que não havia feito antes porque só agora concluiu uma observação, iniciada há alguns séculos: as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo acabasse em franjas de algodão. Ele iria puxá-las por essa franja, e trazê-las para sua igreja; atrás delas viriam as de seda pura... Deus o interrompeu observando que ele era vulgar, que era o pior que podia acontecer a um espírito da tua espécie. ¬ Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens forças para renovar um assunto gasto, é melhor que te cales e te retires. ¬ Sabes tu o que este ancião fez? Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público. Onde achas aí a franja de algodão? O diabo responde que era um espírito que nega. Negava tudo. O Senhor manda-o embora dizendo. ¬ Vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! Vai! Uma vez na terra, o Diabo não perdeu tempo. Vestiu-se de beneditino e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo e desmentia as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas. Era Diabo verdadeiro e único! O próprio gênio da natureza. Sou o vosso verdadeiro pai! Era assim que falava a princípio, para congregar as multidões ao pé de si. E elas vieram. A soberba, a luxúria, a preguiça, a ira, a avareza, a gula passaram a ser virtude. O diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do diabo, locução direta e verdadeira. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi pode vender também o teu voto, a tua opinião ou a tua fé. Todas as formas de respeito foram condenadas. Para arrematar a obra, o diabo decidiu cortar toda a solidariedade humana. A única hipótese em que ele permitiria amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, A previsão verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se por toda região do globo. Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Certos glutões comiam frugalmente três ou quatro vezes por ano, em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, dissimulado, para fazer crer que estavam enganando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. O seu melhor apóstolo, insigne falsificador de documentos não só não furtava no jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Confessava todas as semanas, benzia-se duas vezes: ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia, o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: ¬ Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.



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