Suje-se Gordo!
(Machado de Assis)
Uma noite, durante o intervalo da peça Sentença ou tribunal do Júri, dois amigos conversavam no terraço do teatro e, foi justamente o título dessa peça que levou um dos amigos a falar de um fato que nunca mais esqueceu. Ele sempre foi contrário ao júri porque o repugnava condenar alguém, e citava aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Tal era o seu escrúpulo que, salvo dois, absolveu todos os réus. Pois os crimes não lhes parecia provado. O primeiro réu que condenou foi acusado de haver furtado certa quantia pequena, falsificando um papel. Não negou o fato, nem podia. Contestou somente a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava o nome foi quem o levou a agir desse modo; e que Deus daria ao criminoso verdadeiro, o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, os olhos mortos que metia pena. O promotor público achou nesses gestos a confissão do crime. O defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a dor da inocência caluniada. Foi um debate brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte. A defesa foi admirável e, salvaria o réu se pudesse. ¬ O crime metia-se pelos olhos adentro. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. Um dos jurados, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos e as respostas dadas. Como os votos assegurassem a condenação, o ruivo ficou satisfeito e disse que seria um ato de fraqueza se o réu fosse absolvido. Um dos jurados proferiu algumas palavras em defesa do moço. O ruivo que se chamava Lopes, respondeu aborrecido dizendo que a autoria do crime estava clara. O criminoso negava porque todo réu sempre nega. E tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! ¬ Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo! Finalizou Lopes. Ficamos intrigados com aquela expressão "Suje-se gordo!" não a entendemos. O réu foi condenado. Quando saímos do tribunal, fiquei pensando na frase do Lopes, e continuava a não entendê-la. Algum tempo depois fui designado para participar de outro júri. Fui e julguei três processos. Um deles era do caixa do Banco do Trabalho Honrado; acusado de desvio de dinheiro. O indiciado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes! Essa descoberta desconcentrou-me e impediu-me de acompanhar atentamente o interrogatório. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado. Seguiu-se a leitura do processo, era um desvio de cento e dez contos de réis. O conteúdo dos autos era impressionante: o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga e uma série de circunstâncias agravantes. Lopes ouvia com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgá-lo. Todos os seus gestos serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo; o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito. Enquanto os dois oradores falavam, eu pensava na fatalidade de estar ali na minha frente, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Aquele que julgara outrora era agora julgado também. Lembrava-me agora da frase do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Com esta lembrança foi evocado tudo o que aconteceu na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Só agora então, entendia o seu significado. Não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo! Lopes foi absolvido por Nove a Dois. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! Porém, mais seguro é não julgar ninguém... Acabou o intervalo, vamos para as nossas cadeiras.
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