Fisiologia do Medo
(Tom Coelho)
Em minha adolescência, dos muitos desportos que pratiquei, um acertadamente pode ser rotulado como "radical": o pára-quedismo. Não me perguntem como surgiu a idéia. Lembro-me apenas de seguir de carro pela Rodovia Castelo Branco, aportando na cidade de Boituva, ainda hoje sede do Centro Nacional de Pára-quedismo. Dos exactos trinta saltos que realizei em minha breve carreira, com uma grande reserva regisrada no sétimo salto, ficou a lembrança de algumas sensações e uma grande aprendizagem: enfrentar e respeitar o medo. Saltar é um elogio à adrenalina. Você a sente permeando seu sangue assim que inicia a preparação, quando é "equipado" com roupas apropriadas, pára-quedas postado nas costas, altímetro posicionado no peito ou no dorso da mão e óculos de protecção. Após uma sessão de "briefing" – uma simulação em terra do salto –,a aeronave, quase sempre um Cesna monomotor ou bimotor que voará nos céus por 45 minutos até atingir a altitude adequada. Sentado no avião, pois os bancos são removidos, você acompanha vagarosamente a evolução do ponteiro no altímetro, aprecia a paisagem e pensa na vida... Mas o momento de maior tensão ocorre quando o piloto corta o motor da aeronave que passa apenas a planar. A porta do pequeno avião é aberta, o vento invade com veemência seu interior e você se dirige ao estribo, de onde mergulhará para o nada, para a amplitude do horizonte, nadando através das nuvens, feito pássaro, entre "loopings" e giros, durante intermináveis sessenta segundos. Depois, há ainda o desafio de comandar a abertura do pára-quedas, contemplar os arredores enquanto realiza manobras que dão a côr, visualizar o alvo e aterrar, sempre em segurança, desde que se os procedimentos de pouso sejam observados. Recordo-me que durante a semana, quando andav por uma rodovia qualquer, ao abrir a janela do carro e colocar o braço com a mão espalmada para fora sentindo o vento forte a arrastá-lo, o êxtase percorria meu corpo, como se eu estivesse a 12 mil pés. Entretanto, com o passar do tempo, esta sensação se esvaiu. Afinal, a gente se acostuma a tudo. E, tempos depois, diante da anunciada chegada de meu primeiro filho, abdiquei do desporto, não por mim, mas em respeito a ele. Uma semana após a tragédia do vôo 3054, retornei aos aeroportos. Mais do que o caos administrativo, encontrei um clima de apreensão estampado nas feições de muitos passageiros. Embora acidentes rodoviários sejam responsáveis pela perda de mais de 35 mil brasileiros todos os anos, ninguém assume o volante de um carro acreditando que encontrará uma colisão curvas adiante. Ocorre que primeiro começamos a recear as descolagens, porque um reverso pode entrar em funcionamento inadvertidamente. Depois, passamos a temer o intermédio, quando em velocidade de cruzeiro, por inépcia de contrôle do tráfego aéreo, descobrimos que podemos colidir com outra aeronave em sentido contrário. Agora, quando ao tocar o solo, todo o medo parecia ter razão para se dissipar, aprendemos que o vôo só termina quando acaba, porque pode simplesmente não parar. O avião em que estou, pousa. Quando a desaceleração é certa, vejo uma senhora ao meu lado suspirar com alívio, fazendo o sinal da cruz. Vejo também alguns rostos que guardam semblantes de pavor. Pessoas, projectos de vida inteiros, de todas as idades, que por instantes poderiam partir sem semear ou mesmo iniciar a colheita. A fisiologia do medo remete à acção de neurotransmissores que conduzem a duas perspectivas possíveis: fuga ou luta. Nenhuma delas é opção plausível diante do sentimento circunstancial e transitório suscitado em pessoas confinadas a uma cabina à mercê de manipulos, freios, reversos, controladores, companhias aéreas e governos. Mas o facto é que vamos todos superar estes traumas. Simplesmente porque a gente se acostuma a tudo nesta vida...
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