O mal-estar do homem dos ratos
(Maria Truccolo)
O mal-estar do homem dos ratos (ensaio baseado nos textos O mal-estar na civilização e O homem dos ratos, de Sigmund Freud)
Por Maria Truccolo
Há no título "O mal-estar na civilização" uma sutileza que o diferencia de "O mal-estar da civilização", como dizem alguns - e me fazem arrepiar. Entre o "na"-"da" há uma variação semântica que distancia as duas sentenças. O mal-estar na civilização sugere que a adesão à subjetividade que faz do selvagem um ser humano, assim denominado pela "civilização", é a causa do sofrimento contraposto ao natural (versus o cultural) no sentido de natureza instintual pura e simples. Este "mal-estar na" remete à transitoriedade: o sujeito tem escolha entre a adesão à doença (neurose civilizatória) ou a busca da sanidade, via ponderação do que é seu e o que é do outro - individuação em Jung?
O "mal-estar da" induz ao ser, ou seja, o sujeito se sente mal porque "é" assim, não se constitui pelo seu próprio saber, é instituído pelo conhecimento, como se ao nascer tivesse vindo com um chip de regras e normas inviolável, imutável. O "estar na", transitório, remete à possibilidade da recriação do sujeito (que "está" na civilização e não "é" a civilização), ao reconhecer sua singularidade e a partir daí pensar-se como ser único, relativizando a dependência do que lhe propõe/impõe a civilização. Fazendo dela mais ou menos opressora sobre si e modulando seu mal ou bem-estar dentro do conjunto civilização.
E, por mencionar conjunto, uma coisa que me intriga muito na teoria dos conjuntos é o conceito de conjunto vazio, por me parecer um paradoxo: junto com vazio; junto com, mas vazio; junto com: vazio. Será que este vazio evidente, mesmo estando junto com (civilização), acena com a possibilidade da busca, elaboração, de algo? Da singularidade, por exemplo? Assim, imagino, é possível separar, resgatar e conter o que é meu, escolhendo preencher ou não com objetos bons ou maus a parte que me cabe nesse conjunto, mantê-lo vazio de bem e de mal ou fazer a mediação no preenchimento da parte que me cabe, para que eu me sinta menos mal na civilização.
Há perguntas simples, na clínica, capazes de abalar convicções: pra quê? por quê? quem disse?, entre outras, assim, quase monossilábicas. E que no entanto, dependendo do momento em que são propostas, tornam-se incisivas a ponto de levar a insight(s). E daí ao reconhecimento da singularidade e da possibilidade de ser sujeito e não apenas estar sujeito à (civilização).
O homem dos ratos
Freud rebatiza Ernst Lanzer (EL) como "O homem dos ratos", para manter o nome do analisando no anonimato e poder contar seu relato (ao longo de nove meses, na clínica), divulgado ao mundo pelo psicanalista como exemplo de neurose obsessiva. Freud lida (toureia, luta em batalha) em meio a uma relação pai/filho, e se coloca na posição de educador amoroso, de pai disposto a escutar - conforme o psicanalista canadense Patrick Mahony, que pela primeira vez revelou o nome do "homem dos ratos" ao mundo, em 1986 (Roudinesco, E. e Plon, M., Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, 1998).
Freud, em nove meses, tempo improvável para uma análise bem-sucedida (e ela será), tenta reeducar EL, como um pai compreensivo em relação às confissões do filho? E o "reeducar" seria no sentido de recriar, ressignificar, já que o site é o lugar da criação? Pai-criação-filho e a denominação do homem anterior como "dos ratos". Freud, portanto, não desvincula o homem dos ratos e assim expõe sutilmente a situação de chegada de Lanzer à sua clínica.
Os ratos aparecem na história narrada por Lanzer como agentes punitivos (que entram no ânus do culpado/supliciado), por uma culpa relacionada a uma dívida. Freud interpreta o terror de Lanzer pelo castigo com os ratos como o horror ao gozo. Ao longo da narrativa, Lanzer conta como foi reprimido sexualmente, pelo pai, que o proibia de morder e masturbar-se (o erótico interditado), remetendo o gozo à morte.
A interdição civilizatória (em nome do pai e feita pelo próprio pai, neste caso) mais marcante é aquela referente à mastubarção, é a segunda interdição da expressão de desejo (agressividade liberada na mordida/prazer do gozo) sexual de Lanzer. Em sua história de vida, então, Lanzer se refugia em amores platônicos. A prima por quem se apaixona é pobre (o pai apaixona-se por uma mulher pobre, mas casa-se com uma rica), depois tem de extrair os ovários, portanto não poderá ter filhos. Se o gozo do ponto de vista judaico/cristão está exclusivamente para a procriação, Lanzer, um judeu-austríaco, com sua prima/esposa ovariectomizada, estaria privado disso.
Sua obsessão compulsiva por orações e métodos capturam a energia que poderia ser investida em desejo de vida e não no prazer com a morte – o gozo pela introdução dos ratos em seu ânus, tanto que delira com o não pagamento da dívida que tem para com o capitão, o que seria um motivo da cruel punição com os ratos. Seria, então, a civilização a morte do sujeito pela sobrevivência do conjunto, mesmo que este seja vazio, porque retira opções e não oferece outras? Como o "pai-educador" dará conta disso?
Lanzer transfere a Freud a posição de pai/capitão, agentes da culpa/castigo, o insulta em sonhos, quer ser castigado. Mas, na contratransferência, Freud não castiga. Esclarece, mostrando as próprias associações do analisando, possíveis a partir das interpretações (mesmo que não ditas) do analista. Assim, Freud oferece novas possibilidades de escolhas, de reinvenção de si mesmo. Ao final da análise, o homem dos ratos casa-se com a prima e torna-se advogado. Não torna-se nem "um grande homem" nem "um criminoso" (mesmo que de um homem só, ele próprio, pelo suicídio), como propunha seu pai, após o episódio das mordidas em alguém, quando tinha quatro anos. Também não permanece na posição em que chegou à clínica, como "homem dos ratos". Se recria como ser desejante e singular, e porque "é" pode relativizar para si o mal-estar na civilização (quando esta se sobrepõe ao sujeito, mais punitiva e castradora do que compreensiva e amorosa).
"Lacan conferiu um estatuto de mito à neurose obsessiva do Homem dos Ratos, mostrando que ela era o próprio modelo de estrutura complexa e da dilaceração originária pelas quais todo sujeito se liga a uma constelação simbólica cujos elementos se permutam e se repetem de geração em geração, como o memorial de uma história genealógica." (Roudinesco, E. e Plon, M., in: Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, 1998).
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