Cobra Norato
(Raul Bopp)
No paraná do Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana. A mãe sentiu-se grávida quando banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras. A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do Paraná porque não podiam viver em terra. Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria selvagem. O povo chamava-os: Cobra Norato e Maria Caninana. Cobra Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. Vez por outra vinha visitar a tapuia velha, no tejupar do Cachoeiri. Nadava para a margem esperando a noite. Quando apareciam as estrelas e a aracuã deixava de cantar, Honorato saía d’água, arrastando o corpo enorme pela areia que rangia. Vinha coleando, subindo, até a barranca. Sacudia-se todo, brilhando as escamas na luz das estrelas. E deixava o couro monstruoso da cobra, erguendo-se um rapaz bonito todo de branco. Ia cear e dormir no tejupar materno. O corpo da cobra ficava estirado junto do Paraná. Pela madrugada, antes do último cantar do galo, Honorato descia a barranca, metia-se dentro da cobra que estava imóvel. Sacudia-se. E a cobra, viva e feia, remergulhava nas águas do Paraná. Volta a ser a Cobra Norato. Salvou muita gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e ferozes. Por causa dele a piraíba do rio Trombetas abandonou a região, depois de uma luta de três dias e três noites. Maria Caninana era violenta e má. Alagava as embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que pescavam, feria os peixes pequenos. Nunca procurou a velha tapuia que morava no tejupar do Cachoeiri. No porto da Cidade de Óbidos, no Pará, vive uma serpente encantadora, dormindo, escondida na terra, com a cabeça debaixo do altar da Senhora Sant’Ana, na igreja que é da mãe de Nossa Senhora. A cauda está no fundo do rio. Se a serpente acordar, a Igreja cairá. Maria Caninana mordeu a serpente para ver a Igreja cair. A serpente não acordou, mas se mexeu. A terra rachou, desde o mercado até a Matriz de Óbidos. Cobra Norato matou Maria Caninana porque ela era violenta e má. E ficou sozinho, nadando nos igarapés, nos rios, no silêncio dos paranás. Quando havia putirão de farinha, dabucuri de frutas nas povoações plantadas à beira-rio, Cobra Norato desencantava, na hora em que os aracuãs deixam de cantar, e subia, todo de branco, para dançar e ver as moças, conversar com os rapazes, agradar os velhos. Todo mundo ficava contente. Depois, ouviam o rumor da cobra mergulhando. Era madrugada e Cobra Norato ia cumprir seu destino. Uma vez por ano Cobra Norato convidava um amigo para desencantá-lo. Amigo ou amiga. Podia ir na beira do Paraná, encontrar a cobra dormindo como morta, boca aberta, dentes finos, riscando de prata o escuro da noite: sacudir na boca aberta três pingos de leite de mulher e dar uma cutilada com ferro virgem na cabeça da cobra, estirada no areião. Cobra fecharia a boca e a ferida daria três gotas de sangue. Honorato ficava só homem, para o resto da vida. O corpo da cobra seria queimado. Não fazia mal. Bastava que alguém tivesse coragem. Muita gente, com pena de Honorato, foi, com aço virgem e fresquinho leite de mulher, ver a cobra dormindo no barranco. Era tão grande e tão feia que, dormindo como morta, assombrava. A velha tapuia do Cachoeiri, ela mesma, foi e teve medo. Cobra Norato continuou nadando e assobiando nas águas grandes, do Amazonas ao Trombetas, indo e vindo, como um desesperado sem remissão. Num putirão famoso, Cobra Norato nadou pelo rio Tocantins, subindo para Cametá. Deixou o corpo na beira do rio e foi dançar, beber e conversar. Fez amizade com um soldado e pediu que o desencantasse. O soldado foi, com o vidrinho de leite e um machado que não cortara pau, aço virgem. Viu a cobra estirada, dormindo como morta. Boca aberta. Sacudiu três pingos de leite entre os dentes. Desceu o machado, com vontade, no cocuruto da cabeça. O sangue marejou. A cobra sacudiu-se e parou. Honorato deu um suspiro de descanso. Veio ajudar a queimar a cobra onde vivera tantos anos. As cinzas voaram. Honorato ficou homem. E morreu, anos e anos depois, na Cidade do Cametá, no Pará. Não há nesse rio e terras do Pará quem ignore a vida da Cobra Norato. São aventuras e batalhas. Canoeiros, batendo a jacumã, apontam os cantos, indicando as paragens inesquecidas: “Ali passava, todo dia, a Cobra Norato...”.
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