António, um Rapaz de Lisboa
(Jorge Silva Melo)
A cidade em “António, um Rapaz de Lisboa”
Os homens reúnem-se em comunidade por partilharem interesses e necessidades e por nutrirem sentimentos de identificação e pertença. Cada núcleo familiar é uma célula una e várias células juntam-se para formar um núcleo maior, pois o ser humano não funciona isoladamente e precisa dos seus iguais para evoluir. Desde os primórdios que os homens formaram as suas comunidades perto de cursos de água e foram alargando as suas fortalezas à medida que essas comunidades cresciam e evoluíam. Pequenos aglomerados deram lugar a urbes com número elevado de habitantes, regidas por um sistema legal, elaborado especificamente para o efeito e, pouco a pouco, as cidades foram-se impondo como microcosmos de poder e importância.
Foram vários os escritores que retrataram a cidade, descrevendo-a como elemento destabilizador, salvador e libertador, ou como local de perdição e condenação. Na peça de Jorge Silva Melo, António, um Rapaz de Lisboa, a cidade é um pouco de tudo isso.
A peça descreve-nos a vida de António, um jovem de Lisboa, que tem um irmão e cuja mãe está gravemente doente. O pai abandonou-os e, por causa da doença da mãe, António e o irmão tiveram que procurar emprego para se poderem sustentar. A mãe vive a sonhar com Espanha e, especificamente, com a cidade de Sevilha, por ter lá sido feliz com o marido e, a determinada altura, parece haver um paralelo entre Lisboa e a cidade espanhola, uma sendo representativa das rotinas e da existência banal, a outra como expoente de diversão e descanso. De facto, a descrição de todas as rotinas das personagens é levada ao extremo da repetição constante, de algo que acontece sempre e acontecerá para sempre, ou seja, não é possível haver evolução por se estar imerso na cidade. Lisboa aparece retratada como um polvo cujos tentáculos manietam quem lá habita, condicionando e controlando todas as suas acções. Os percursos de António são descritos como passos num labirinto circular do qual é impossível sair, e as atitudes dos figurantes são retratadas como mecanizadas, pois aparecem sempre a dizer as mesmas coisas e a fazer os mesmos movimentos, talvez como forma de reforçar essa rotina que angustia e limita.
António mantém duas relações amorosas que não o satisfazem, mas, talvez devido à dita rotina que é a sua vida, não se livra delas. Antes as alimenta, sentindo-se cada vez mais infeliz e sabendo que, por fazerem parte da sua existência quase medíocre, não as pode descartar. Por tudo isso, António e as duas namoradas surgem retratados em movimentos cíclicos de encontros e desencontros, de ansiedades e insatisfações, de infelicidade e impotência. Como ligação entre António e Teresa (a mãe do seu filho) está Nuno, que trabalha com o protagonista e está apaixonado por Teresa. Nuno sabe que António sobrevive numa apatia que o limita e, como defensor de uma vida saudável, tenta incutir-lhe alguns bons hábitos. António acede e, de facto parece transparecer alguma paz e pureza desses encontros na piscina, paz que é logo anulada pelo burburinho das ruas lisboetas. Toda a geração de António parece representar um conjunto de jovens desiludidos com a vida e com a falta de oportunidades que lhes são apresentadas, enveredando por hábitos marcadamente cosmopolitas, tais como a toxicodependência, o alcoolismo, a prostituição. Hábitos dos quais é quase impossível sair e cuja consequência, corporizada pelo cancro da mãe de António, é final e irreversível. Para este desencanto e morte generalizada contribui a cidade, por ser um microcosmos fechado, condicionando todos os que a habitam.
Curiosamente, a única personagem que parece ter uma evolução na peça é o toxicodependente que vive à porta do prédio de António e que o trata por Lima. Esta personagem parece ter a função de analisar a vida e sentimentos do protagonista, funcionando, talvez, como uma espécie de consciência, tendo a função do coro clássico. É ele quem sabe que António está triste, apaixonado, ou se sente só.É o único que começa a peça a pedir dinheiro e cigarros e termina a trabalhar disfarçado de Pai Natal. Embora a evolução seja pequena, esta personagem parece ser a única que se conseguiu descartar do poder da cidade, talvez porque apesar de viver imerso nela, vive como um outsider, como alguém de fora, sendo capaz de a analisar e dominar, por ter uma visão objectiva.
No final, a cidade vence e António continua a sobreviver numa série de encontros e desencontros circulares, de rotinas repetitivas e angustiantes, de consumo de drogas e abandono, corporizando uma geração desencantada cujos sonhos e aspirações lhe foram negados por condicionalismos vários. E a cidade, vendo essa falta de objectivos, essa impotência, lança o seu poder cinzento e repetitivo e faz com que cada percurso de vida seja levado até à exaustão. Lisboa surge como uma deusa grega, terrível, que domina e governa a vida de todos os que vivem sob a sua alçada. Será que alguém tem coragem para lhe fugir?
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