Uma manhã
(Márcio Raven)
Uma manhã
Me lembro muito bem, quando em uma manhã meu pai disse, alto e em bom tom, sentado em uma cadeira velha, junto ao fogão de lenha (principal instrumento de minha mãe até então):
- Joãozinho do primo Chico morreu < pausa >... Matarão.
Aquela senhora de jeito calmo, palavras apropriadas, de um susto quase não volta, de sua pergunta começa minha historia:
- matarão? Ele era tão educado, calmo, um menino de ouro, pobre Joãozinho, rosto de rapaz, coração de criança, vá e esteja com deus... Meu filho!
Aquela morte, primeiro passo para curiosidade, infeliz anseio de uma vida de verdade.
Corria na boca da galera que era ladrão, de galinha, de varal, sem chance de ser um cara legal, ter sua vida sossegada e tal, alforria dos negros, a favela nasceu ali, boca dos porcos, que a mim não devem, mas que a mim pagarão a morte de João, incidente nas drogas, que em minha cama dormia, em minha mesa almoçava e que a mim de irmão chamava.
To na estrada, correndo, parado, vivendo, morrendo, na angustia do dia, na liberdade da noite... Mulherada, drogas, carros, armas... To no caminho, do bem, talvez, da vingança, to a caminho, de uma herança que a mim resta pouco, pegar um por um, daqueles que matarão simplesmente João, do peito, mais um mano, que morto foi e que em seu enterro só camaradagem (ainda era pequeno, mas a lembrança ficou) de um lado meu pai, três anos de cana, Carandiru... Do outro minha mãe, vida dura de diarista, mas que jamais me faltou, que de mim um doutor sonhou, que a mim resta pouco.
Mesmo a farinha que aqui rola solta e impune, mas como ser uma pessoa normal se de rapa e gambé a galera paga-pau, saca e de três pra cima, como aquela senhora que a morte assolou, seu filho, cinco tiros do pescoço pra riba... Será que sobrevive, no mundo é.
Assim mesmo, você batalha, sem chances, você luta contra o sistema, filhos da puta, de carro importado, mansão no Morumbi, role no litoral, sistema de rua, jogado na sarjeta, de boca pra baixo, cachorro lambendo, o mundo é cruel, você vacilou, agora se segura que o fim não é exatamente o céu.
Perder um camarada dói e muito, mas o mundo roda, te faz aquietar, te faz voltar a sonhar, ate o momento que o cidadão de bem, calmo e feliz se lembra do passado, João, morto, infeliz desgraçado, vou te procurar, meu anseio jamais vai se perder, e a ti vou chegar, nada de vingança, nada de tiro, sem revanche pra você, ali parado na esquina, famoso lugar de encontro com a morte, talvez não do seu corpo, talvez somente de sua alma, calma, logo ira se situar, farda fudida, berro na cinta, cassetete em punho, olhe nos meus olhos, sinta tua pena, julga-se o dono, coitado, vai morrer, no céu, no lugar de João só as lembranças de meu "irmão", deste peste à atenção na rua chamou... Lembra-se daquele que você matou? Lógico que não, foi só mais um pra você, só mais uma bala que o estado paga, lembra-se daquele que você matou... Encontre-se a ele agora... Pol, pol, pol... Três é o suficiente, maldito, toma na cabeça, pois você procurou e ate que enfim achou... Me perdoe meu deus se agi errado, mas na lei do cão não há tempo exato, to na correria, to fugindo, infeliz daquele que sem mãe e nem pai sobrevive, sem mulher ou filho, aquele que no mundo acorda e que do mundo nada acha, ou nada ganha... Me perdoe me deus por ter me igualado a ele... Sim meu deus, a teu povo, de teu céu, hoje na rua e amanha no buraco, mesmo embaixo dos sete palmos minha historia será contada, se alardeara pêlos cantos, de minha vila, ou se conseguir manchete de jornal virarei, tudo na lembrança de um irmão que não tenho mais, de um irmão que ao céu agradece por eu sobreviver!
Márcio Raven
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