O telefone
(Rubem Braga)
Um homem escreve á Companhia Telefónica:Quem vos escreve senhor é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingem essa qualidade depois de uma longa espera na fila.Não venho senhor, reclamar nenhum direito.Li o vosso regulamento e sei que não tenho direito a coisa nenhuma, a não se pagar a conta.Esse Regulamento impresso na página 1 de vossa interessante lista ( que é o meu livro de cabeceira) é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham entretanto propensão ao orgulho e a soberba.Ele nos ensina a ser humilde; ele nos mostra o quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinário prazer de me fazer uma visita.Tomamos uma modesta cerveja e falamos de coisas antigas até que o telefone tocou. Era alguém querendo falar com meu amigo.Um assinante mais leviano teria chamado meu amigo, mas eu não.Comuniquei ao meu amigo que alguém queria falar-lhe e com imenso prazer anotaria o recado e o passaria, pois o Regulamento prêve que o aparelho instalado em casa só pode ser usado pelo assinante, pessoas da família, seus representantes ou empregados.Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o respeito ao regulamento;" dura lex sed lex"; eu sou assim.Sei também que se minha casa pegar fogo eu terei que continuar pagando a assinatura ( artigo 4) mesmo que o incêndio for motivado por algum curto circuito organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia ( artigo 9º ).Sei finalmente que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a esta distinta companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser com lealdade de pensamento ás expressões adequadas, ficarei eternamente sem telefone, pois linguagem obscena constitui motivo suficiente para a Companhia desligar o aparelho. Enfim senhor, eu sei tudo, que não tenho direito á nada, que não valho nada, não sou nada.Há dois dias meu telefone não fala, não ouve, nem toca, nem muge, nem tuge.Isso me trouxe, é certo senhor, um certo sossego ao lar. Mas eu amo a voz humana senhor. Pensai nisso senhor, em todas as perspectivas senhor que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado -cuém, cuém, cuém - quando na verdade ele está quieto e mudo na sala de jantar.Falar nisso, senhor, vou jantar, contemplando tristemente o aparelho silencioso, que transmite sonhos errantes no ar. Batem á porta.Levanto o escuro garfo do magro bife, e abro. Céus é um empregado da Companhia Telefónica! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador.Volto ao bife, curvo á cabeça., mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos.O telefone continuará mudo, não importa; ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.
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