A jóia
(Huascar P. Rodarte)
A jóia. Ela tinha se acostumado. Era passar e faces se voltavam, pescoços se contorciam e olhares eram atraídos. Tinha uma aura que funcionava à maneira de um campo de força, curvando o espaço-tempo com sua presença. Para testar seus poderes, costumava sair desleixada. Mesmo sem cuidados e maquiagem, o fenômeno de olhares enternecidos a seguí-la não se alterava. Parece mesmo que atraía mais interesse pois a simplicidade a fazia mais acessível aos olhos de alguns mais tímidos. O rosto gracioso, talvez redondo demais para sua idade, lhe conferia um ar infantil. O que não era confirmado pelo corpo. O torso forte e seios pequenos estavam em perfeita harmonia por quadris capazes de hipnotizar olhares em sua oscilação sem exageros. A pele respirava saúde, recoberta por uma penugem fina possuía um tom claro e uniforme. Tocá-la era o ímpeto contido de todos os homens. Era ainda criança quando notou os olhares para ela convergindo. Essa constatação, a princípio incômoda, se revelou com o correr do tempo algo tão essencial como respirar. Ser o foco dos olhares passou a ser o esteio de sua existência. Tudo o mais eram circunstâncias, o essencial era ser idolatrada. Quando o bom senso a advertia em não se fiar tanto em algo tão efêmero quanto a beleza, ela reprimia tais pensamentos. Afinal a beleza era efêmera mas a vida também é passageira e ninguém deve se atormentar com a visão da morte a todo instante. Acima de tudo, a beleza era seu meio de vida material. O que a maioria dos mortais deve obter com o suor do rosto, ela obtinha com a simples presença. Chegava mesmo a se supor meio divina com o efeito que provocava. Era tão fácil viver que não tinha noção do que pudesse ser a dor e o sofrimento. Não se fixava em seus relacionamentos e adquiriu grande competência em usar os homens para atingir diversos objetivos. Aperfeiçoou-se na arte da manipulação e fazia, a cada dia com mais maestria, a direção de suas marionetes. Em suas certezas não havia espaço para considerar os riscos a ameaçar seu tesouro. Mas o acúmulo de inveja e maus olhados que despertava compunha um tratado completo sobre o schadenfreund. Quando o ácido queimou a face o sorriso brotou dos lábios da agressora. Somente os lábios se podiam ver, o resto estava debaixo de um véu negro. O homem que a segurou com os braços forçados para trás a soltou e os dois saíram correndo pela penumbra da rua deserta. As cirurgias conseguiram recuperar de forma notável seu rosto. As feridas tinham sido localizadas e os danos não foram tão graves. Mas seu espírito tinha sido devastado e não existia medicina que pudesse repor sua serenidade. Passou mesmo a odiar sua beleza, ainda deslumbrante, e recriminava com raiva a ignorância que havia guiado sua vida. Sentiu-se estúpida e inútil como as jóias. De tal forma ficou abalada em sua confiança que assumiu a identidade de uma muçulmana recatada e se veste como tal. São burcas, hijabs e chadores que a protegem do mundo e a põe em segurança diante dos olhares alheios.
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