Antes do baile verde
(Ligya Fagundes Teles)
Há um desfile do Rancho Azul e Branco com seus passistas. O negro do bumbo vê duas mulheres debruçadas na janela e faz uma referência para elas. Lu, a empregada, diz que seu homem é mais bonito e que ficou de pegá-la “às dez na esquina”. Ela não quer se atrasar para que ele não fique brabo e daí “não sai mais nada”.
Então, Tatisa pegou a empregada pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava escolhumbado. Tatisa tinha que vestir um saiote verde e ainda faltava pregar muita coisa na roupa. Lu aproximou-se, temendo pelo atraso. Raimundo já deveria estar chegando. “– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!”
Lu vê que não vai dar para pregar todas as lantejoulas verdes no saiote, mas mesmo assim prossegue no trabalho. Tatisa está de biquíni, meias, unhas e cabelos verdes: iam a um baile verde, com direito até a nota pela aparência. E ainda faltava mais da metade.
Enquanto Tatisa preocupa-se com o calor e o com o vestido, Lu franziu a testa e disse em tom baixo de voz “ele está morrendo”. Um carro passa buzinando, crianças gritavam e Tatisa continua preocupada consigo. Não deu importância ao que Lu falou.
De repente, Tatisa pergunta, num tom sombrio: “– Você acha, Lu? – Acha o quê? – Que ele está morrendo? – Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite. – Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante. – Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. – E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo. – Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu. – Aquilo não é sono. É outra coisa”
Tatisa então se levanta e toma um copo de uísque, preocupada se sua pintura não estava derretendo. “Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver. – Você está bebendo demais”. Já Lu fica preocupada novamente com o atraso, com o pensamento no Raimundo lá na esquina. “– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode esperar um pouco?”
Lu lembra que no carnaval passado se divertiu muito; já Tatisa diz que estava na cama, com muita gripe, e que neste queria se esbaldar. “– E seu pai?” Volta a tomar um gole de uísque: “– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo?” “– Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?” “– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender."
Lu volta a falar no carnaval passado, mas Tatisa diz que ela já se enganou uma vez. “– Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse. – Ele se fez de forte, coitado. – De forte, como? – Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar”.
Tatisa se irrita; porém, arrepende-se: “– Escuta, Luzinha, escuta – [...] tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. [...] uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura... – Ele estava se despedindo”.
Tatisa culpa o médico por ter deixado o pai no quarto, sem ela saber tratar de doente. E se indigna com Lu: “– Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta! – Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso”. A jovem abre a porta do armário e se vê no espelho e pede para que Lu não demore, pois à meia-noite virão buscá-la. Então Lu pergunta por que não deixou o pai no hospital, e Tatisa diz que não podem ficar com um doente “que não resolve”. "Ele viveu sessenta e dois anos. Não podia viver mais um dia?”. Tatisa faz uma proposta a Lu: para que ela fique cuidando de seu pai; ganhará, com isso, um vestido e calçados. Porém, a empregada rejeita. Oferece mais um casaco, mas é em vão. Tatisa bebe mais alguns goles de uísque. Diz que Lu estava enganada, e que o pai estava dormindo, e não morrendo. Então, pegam as bolsas e ficam juntas na escada. Tatisa quer espiar o pai, mas Lu desce as escadas. De repente, Tatisa pede para esperar e também desce rapidamente. “Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la”.
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