A singradura do capinador
(Luís Serguilha)
Sobre uma capa rubra, toda em fendas de um vermelho mais vivo e com versos que as acompanham em entrecortes ao acaso, caminha o título “A Singradura do Capinador”, livro, lançado há exatamente dois anos atrás pela editora Indícios de Oiro, do poeta português Luís Serguilha.
Ao abrir o volume, tem-se a surpreendente percepção de largueza, haja vista que o formato de todo o livro está em paisagem. Assim sendo, essa configuração altera a percepção visual habitualmente vertical de nossas leituras. Estendem-se poemas por sobre as páginas que se dilatam juntamente com as extensas linhas poéticas de Serguilha.
Assim, 37 poemas são intitulados com algarismos romanos e, ao primeiro olhar, os versos parecem flutuar na página, em virtude da disposição tão fora do que é convencional, sem nenhum tipo de pontuação e a cada estréia de linha os espaços ocupados são distintos, de acordo com a casualidade da entonação. Nota-se que também a seleção de caixa alta acompanha o ritmo da leitura, a pausa para a respiração, talvez seja uma inusitada sugestão à formação de estrofes:
Numa ondulação intervalada de rastejantes substâncias
magnetizas a espádua ilimitada das combinações
que auscultam o exuberante deslizamento dos semáforos instantâneos
onde os pilares escalavrados do sol parecem pássaros
de vantagens perfeitas
O primeiro verso inicia-se por preposição, ou seja, o que se coloca antes. Além de ser uma palavra relacional, normalmente, a preposição encontra-se situada entre outras. Assim estão as substâncias que serão atraídas pela segunda pessoa do discurso, privilegiada porque, a cada sinal de domínio dos fluxos contínuos, os sustentáculos serão arranhados pelo sol, ou seja, pela luz, e transmutam-se: em vez de ruírem, voam.
Os conceitos arraigados, então, vão sendo impulsionados por um traçado em brasa advindo do braço do mar que adentra a terra. E é aqui que trabalha o capinador (capinar + dor), como aquele que carpe ou que chora, que em sinal de dor arranca algo, emenda, conserta, que se dedica ao aprimoramento da terra.
Esse é o caminho no qual se pretende extrair a preciosidade entre os sentidos que brotam, inovadores, do processo multiplicador da construção significativa. Assim, dá-se a poesia de Luís Serguilha “sobre a circunspecção cosmopolita dos respiradouros”, linguagem que está sendo ventilada pelo mundo, desprezando as fronteiras, apreendendo a humanidade de cada homem.
E são as fêmeas que enxugam as corridas do sol com sua expressividade irregular. Tais toalhas-folhas são reflexos lunares basilares na formação simbólica idiomática, idiossincrática.
O mecanismo das mandíbulas turísticas
acompanha as audiências desconjuntadas do pousio
aos odores feéricos das eclipsadas ânforas
é nesta víbora entreaberta de pugilantes histórias
[...]
entre os golpes sonâmbulos das fortificações anfíbias
Remanesce uma cor do desabrochamento entre as bailarinas amásias
que imploraram concentradamente
a destreza pacífica do naufrágio
às inominadas bebedeiras das ecoantes borboletas
É de extremo bom gosto a imagem de como a poesia pode ser recebida. A luz (o que esclarece) compondo com virtuosismo uma dança que é o “entre”, no qual se apóiam diversas outras imagens a serem condensadas em uma cadência que prevê a descendência do extraordinário que reside no intimidante.
O que nasce caminha desde os sons que descansam na terra até as fragrâncias do mundo surpreendente quando submerge por entre os líquidos ou sementes. Serguilha traça magistralmente o processo transformador de significados, o qual se encerra no renascimento do que, sem nome, aparecerá como a metamorfose da borboleta.
O único poema que tem título é o último, “Canário-do-mar”. Parece que o poeta sintetiza este trabalho que circula entre água e terra na química das construções líricas que voam com o canto melodioso de um pássaro. No entanto, Canário-do-mar (sea canary) é um nome dado à Baleia Branca ou Beluga, devido a seus cantos e assobios. Essa espécie de mamífero cetáceo marinho possui uma enorme boca e é o maior animal atualmente existente, hábil para a convivência com humanos, já que é capaz de assimilar seus hábitos.
Os sinónimos árcticos dos veleiros-parábolas as coincidências
dos periscópios das torrentes e os meteoros intemporais do guitarrista
soldam demoradamente
a curvatura fértil do outono na fidelidade eqüestre da tempestade[...]
Neste final do poema, Serguilha aborda sobre a apreensão dos significados por parte dos navegadores-leitores e, por conseguinte, o alargamento das representações que trepidam como as estrelas no firmamento interior (mental). Assim, vão se estruturando os mecanismos (vê-se que não há vírgulas, mas um espaço mais extenso entre os organismos): sinônimos às elaborações que serão verdades cristalizadas, reflexões que serão feitas através de superposição de observações e insights.
O poeta ressalta o papel dos artistas, intelectuais, estudiosos de uma maneira geral, como “caçadores de espelhos eternos”. Estes assumem o papel de investigadores da humanidade e seu progresso, em um movimento inquieto e fundamental para o desenvolvimento da sociedade. São depositados os sedimentos dessa coletividade em suas mentes, acompanhadas pela solidão indócil que grita entre as tramas fluidas na qual reside o amador e a arte.
Enfim, Luís Serguilha trata sua obra com elegância em um trabalho que investiga as infindáveis possibilidades de uma palavra significar. Com metáforas que não conhecem limites, sua poesia em “A Singradura do Capinador” é horizontal, larga e requintada, trama que, ao ser arquitetada, vai revolvendo a terra simbólica de nossas palavras, cavando entre os terrenos, fertilizando-os. E a cada lágrima que versa com os sulcos provocados pela trajetória de suas expressões, pedras são quebradas, algo é expurgado e outro, amolecido, durante a leitura dessa alquímica poesia.
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