Livro do Desassossego
(Bernardo Soares)
“Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.” Bernardo SoaresA prosa de “O Livro do Desassossego" surpreende a prosa e se descobre poética. Épico grego às avessas. Não mais a poesia que serve à narrativa, mas prosa que alça vôos sobre si e se desdobra em função de quem antes a servia. Prosa monótona e acomodada como o dia-a-dia de Bernardo Soares (semi-heterônomo de Fernando Pessoa); ao mesmo tempo, intensa e desassossegada como seu espírito. O desassossegado estabelece uma conexão com o mundo a partir do eu que sente e observa acima de qualquer entendimento. O mundo não é um enigma a ser decifrado (antes ser devorado pela esfinge), é um mistério que se apresenta inteiro em todas as suas partes, e, se não deve ser decifrado, tão pouco pode ser intuído ou vivenciado sem dor. A perplexidade diante de um mundo que não oferece sossego aos que não aceitam respostas, deixa apenas o refúgio das sensações; experienciadas com distraída atenção por Bernardo, atrás de algo, que está atrás dos sentidos, sensacionisticamente enfeitiçado pelas paisagens das suas janelas. Sua busca é o belo, gratuito como a vida, surpreendido atrás do seu guarda-roupa, da cama, do homem que lê o jornal. Na voz de Bernardo Soares, Pessoa, nos oferece uma epifania às avessas, a epifania do não-maravilhoso, do eco tácito e constante das percepções progressivas. Transcendendo o mundo em seu íntimo sem abandonar a rotina e o marasmo do desassossego e descobrindo a (in)razão de todas as coisas no vazio e na ausência. Este é um dos motes constantes do texto, a tediosa tragédia dos sentidos e da radicalidade da razão, que não pode, por ser radical, acreditar-se. O desassossego é parte da condição humana. Mais que simples angústia, é a intuição da existência em toda a sua complexidade amorfa. Não existe descanso para o poeta do prosaico, seu espírito apenas apreende o mundo em seu vazio e o descreve conforme às próprias vistas. Não existe, tão pouco, o fantástico. As coisas não são maravilhosas apenas por serem misteriosas. São todas íntimas ou desconhecidamente íntimas. Ao homem resta apenas a intimidade com as coisas e ações e a perplexidade por desconhecer o que lhe é tão próximo. Há um completo desinteresse pelos fatos, essências ou narrações no livro. Só o devir em seus devaneios interessa. Não o devir heraclidiano, passagem de todas as coisas no devido tempo, mas o devir que lhe sussurra às entranhas, que lhe empurra o mundo goela abaixo e com o ventre inchado percebe o mover de tudo dentro de si. Bernardo dá sua alma, fluida e contraditória à realidade. E passivamente observa as voltas em sua vida. Lhe falta energia para enfrentar o que não precisa ser enfrentado. Mesmo a vontade se perde dentro da existência. O desejo não tem outro papel, que não, se mover no vazio e para o vazio. O movimentar-se continuo do desejo produz mais desejo e só. Porém, não há aqui nenhuma apologia à razão ou negação da vontade. Há a percepção quase mística, revelada e apreendida no continuo mover-se de todas as coisas, de que todas as coisas estão em seu devido lugar, pois, não há lugar predeterminado para o que existe. Não existe, assim, poder na vontade, que não o de poder ser em si mesma, eterna e circular. Não é a toa que Pessoa, passa, praticamente toda a sua vida escrevendo o livro do desassossego, não lhe falta matéria ou assunto, pois a matéria e o assunto não existem. O livro é a busca que dá em nada e se auto justifica pela própria busca. Que, não existindo, se encontra e ratifica. Como diz: “O mundo exterior existe como um actor num palco: está lá mas é outra coisa. ”Ou ainda: “O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação.” Não há busca. Há, constatações em preto e branco. Quadros e mais quadros justificados pelo vazio. Mas há, sim, beleza. Beleza em espiral. Poesia enquanto matéria e assunto, girando em torno de si mesma e dos mesmos abandonos. Há em diversas outras obras e heterônomos de Fernando Pessoa a opção epistemológica pela sensação, pelo que é puro e imaculado porque é dado. Aparecem também constantemente, de uma só vez, a repulsa aberta e o encanto velado pela razão. Mas em nenhuma outra obra há tanta ausência em passiva subversão, que a nada dá suficiente valor ou importância para que deva ser enfrentado. Por fim, o diário de Bernardo Soares (alguns defendem ser o de Fernando Pessoa), por vezes tedioso e repetitivo, nunca desnecessário ou sequer necessário, é, porém, indispensável. É na gratuidade, no tédio, na repetição que o “Desassossego” volta sempre à suas engrenagens, refazendo o fôlego no ar viciado dos seus motores, para assumir a existência em seu vazio criativo. Nada deve ser afirmado ou negado. Não há nada para ser assumido. Tudo está em seu lugar sem ordem ou razão. Nada precisa ser mexido, tudo pode ser recriado. A pele está em seu avesso e precisa sentir para dentro.
Resumos Relacionados
- O Enigma D? O Livro Do Desassossego
- O Eterno Retorno Em Niezsche
- Cansaço, Tédio, Desassossego
- Epicuro E A Evidência Do Ser Em Carta Sobre A Felicidade
- Fernando Pessoa
|
|