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O Sabor da Adrenalina
(Aniceto Ferreira de Carvalho)

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Nós íamos fazer um voo de navegação. O piloto era o Pombo, um furriel que entrara comigo há cerca de três anos na Força Aérea. Embora viesse a constar depois na caderneta como tripulante, no caso, no lugar de trás do Helldiver, eu ia como "saco de batatas": para dar um passeio de avião e ver lá de cima como eram as coisas cá em baixo... se viesse a calhar fazer umas rapadas à praia, para dizer adeus às miúdas em fato de banho. Tanto quanto eu sabia e me interessava saber, no "papel" o voo era uma monótona viagem de navegação, lá para os três mil pés pelo Alentejo fora... Bom, isso era o que constava do plano de voo, porquanto, o que fatalmente viria a acontecer, é que com os sargentos pilotos mais ou menos da minha idade ia ser um voo a "rapar", com umas picadas aqui e ali para descontrair. O habitual era uma descolagem muito certinha, subir até à altitude conveniente, e aí, logo que fora das vistas da unidade, nem os coelhos ficavam com as orelhas em segurança se as empinassem demasiado. Refastelei-me, fechei a cobertura da cabina, fui olhando as casas do Montijo a ficarem para trás, por baixo da asa do avião. Estávamos a ganhar altura... mais uns minutos, começaríamos a descer de novo. O piloto doutro Helldiver que esvoaçava nas imediações, chamou o nosso avião. Tinha ouvido os procedimentos da nossa descolagem, resolvera simplesmente acompanhar-nos. - Vou contigo! - disse ele. Depois adiantou: - Andava por aqui a dar uma volta... Não preparei a viagem, não trago cartas nem nada. Faz tu a navegação... vou contigo. Era um segundo-tenente da recém extinta Aviação Naval que eu conhecia bastante bem, creio que chegado à Base Aérea 6 pouco depois de mim, talvez aí ano e meio antes... Um daqueles oficiais para quem os militares são, antes de tudo homens, que sem deixar de lidar com os subordinados com a maior lisura e à vontade, nem o mais indisciplinado dos subalternos se atreve a ter uma palavra ou gesto menos conveniente. Agora, no entanto, não era bem vindo... Vinha estragar a minha voatana de rambóia. Aquela alteração não estava nos meus planos. Afundei-me frustrado na cadeira, enterrei o bivaque até aos olhos, preparei-me para deixar passar o tempo. Mas dormir não era o mais apropriado. Mesmo com um olho fechado e outro aberto era sempre melhor continuar atento. Um avião não encosta à beira da estrada, e o Helldiver, apesar de na minha pouca experiência me merecer toda a confiança, não deixava de ser um só motor a puxar oito toneladas de metal. Sempre me pareceu bastante mais sensato enfrentar o medo de frente do que a ideia de acordar morto. Passámos umas terras que eu mais ou menos conhecia, tentava identificar o castelo que deslizava por baixo da asa. Se não conseguisse lá chegar, ia perguntar ao piloto. Pareceu-me sentir o avião estremecer, o roncar do Wright Cyclone aos solavancos. - Tenho o motor a parar, senhor tenente!... A voz angustiada do piloto deve-me ter feito saltar os olhos das órbitas. Senti os cabelos das fontes a eriçarem como alfinetes, todo o meu corpo estremeceu num arrepio. - Vê lá o passo do hélice, o selector da gasolina!... - recomendou o outro piloto. - Não sei, senhor tenente... Já tenho o avião "a boiar" - respondeu o furriel. A "B-O-I-A-R"?!... Em linguagem aeronáutica?!... Então está bem... Desapertei os cintos de segurança. "Raios me partam se fico cá dentro", consegui raciocinar. Deitei a mão ao manípulo, comecei a fazer deslizar a cobertura da cabina. Eu não fazia a menor ideia do que seria saltar de pára-quedas. As vagas instruções do curso já lá iam, e "teorias de alojamento", na camarata, em que se exemplificava com saltos da cama para o chão, era cá em baixo, de meio metro... Lá no alto, sair dum avião a mil e tal metros de altitude e a 300 quilómetros por hora, a conversa mudava de figura. Ouvi o motor dar um ronco medonho, senti o avião saltar em frente, fui espalmado contra as costas da cadeira. A selecçãoda gasolina acabava de ser restabelecida, estávamos de novo a voar em segurança. Recostei-me exausto, voltei a apertar os cintos, fechei a cobertura. - Então pá... Que diabo se passou aí à frente? - A voz saiu-me trémula, quase irreconhecível. - Eh pá!... Nem me lembrou que ias aí atrás!... - respondeu. Não fiquei muito surpreendido: Nos escassos segundos anteriores, o piloto tinha tido muito mais com que se preocupar. A dois metros de equipamentos, sem uma réstia de luz entre nós, quase o podia ver lá na frente a respirar fundo e a limpar o suor da testa. O piloto do outro avião é hoje o General António da Silva Cardoso, uma lenda de integridade para quem o conheceu, o autor de "Angola - Anatomia de uma Tragédia". Por certo, ele não o saberá... mas, não fora a sua providencial decisão de nos acompanhar, não é de excluir que o autor destas linhas tivesse acabado no meio dum monte de destroços há 46 anos nos arredores de Montemor-o-Novo. É que uma paragem do motor do Helldiver a rasar a copa das árvores, não daria com certeza para ficar por ali a "BOIAR".



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