o vôo
(gabriel troilo)
Estava em seu caminho, sua existência se resumia em perambular de um canto a outro atrás de providência para continuar. A curiosa vida na pacata paisagem cerrática. Entre uma flor e outra, entre as águas clarinhas do estreito riacho, entre galhos retorcidos e folhas caídas, passeava ela sorrateira com suas belas asas. Estas asas e seu bater insistente, não cessava nem mesmo a pousar na areia molhada. Cada movimento revelava os desenhos azulados, azul forte, capaz de prender os olhos do transeunte distraído. Um tilintar azul a desenhar seu trajeto pelo verde da mata, pelo amarelo da rocha, cor brilhante a contrastar o espaço à volta. Batia as asas, ganhava altura e sumia-se entre as árvores. Com seu sobe e desce agilíssimo reaparecia com movimento ousado em momento imprevisto. Usando de boa astúcia escapava ás lentes dos que queriam registrar seu encanto. Um encanto azul, não como o do céu ou do mar. Um encanto vivo, em movimento. Voava ela, voava atôa e brincava a voar. Tão leve que a brisa mais suave a arrastava tirando do vôo a direção escolhida. Um pequeno e humilde animalzinho, que com tamanha elegância depositava sua parcela de beleza a tão rico cenário. Uma borboleta azul.Acurada artimanha a natureza empresta aos seres que brincam com a gravidade. Aos que reinam pelos céus e causam inveja a todo bicho que está preso á terra. Ascendem por grande altura, tendo o privilégio da visão em amplitude maior. Deslizam pelo ar em movimento embalado pela brisa, percorrendo as grandes distâncias com o mínimo esforço. Este sublime movimento pelas nuvens, pelos ares.O vôo é sim uma dádiva.Dádiva compartilhada por todo possuidor de valiosos artifícios adaptativos que garantem a leveza. E bem se aproveitam desta condição, com destreza driblam a pressão do meio. Se livram de perreios que fazem os terrestres facilmente perecerem. Pairam pelo céu, com galhardia exibem suas proezas em movimentos a desafiar a gravidade. Disserto por conveniência do instinto nem percebem a grandeza de seu modo de existência. Simplesmente voam sem se dar conta a maravilha do que fazem. Voam.O rasante impressiona pela velocidade, com grande agilidade mergulha numa bocarra de abismo, despencando pelo vale tal qual corisco do céu. Mostra sua cara o gavião traquejado pousando suave sobre o galho seco. Acabara de infernizar uma revoada de andorinhões que no verão vem do norte procurar abrigo nestas fendas de rocha. A plasticidade do vôo destes mestres do ar ultrapassa em muito o da bela ave de rapina. E por este motivo o gavião, com toda sua fama de predador sagaz, parece levar sopapos dos andorinhões no ar. O turbilhão de aves indo e vindo, subindo e descendo , dando bicadas no gavião que com seus movimentos pouco ágeis só consegue planar e tentar desviar-se da surra. Enquanto ele teima em ameaçar continua a confusão no céu de um lado a outro. Não sabem os irritados andorinhões que este esperto caçador não faz isso atôa. Enquanto todos estão distraídos com ele, lá vai, com industriosa valentia sua companheira a atacar os ninhos. Juntos, com estratégia bem planejada, o casal de gaviões acaba por conseguir se alimentar enganando a revoada de assalto. Época agitada nesta região, o cerrado nestes dias é um convite a aves de todos os cantos, e elas invadem estas encostas, estes vales. Enchem de ninhos as escarpas rochosas e trazem vida a essa vegetação retorcida. Causa espanto o barulho semelhante a uma dezena de jatos quando passa a revoada de andorinhões, um dos pássaros a alcançar maior velocidade no ar. Sem falar no estardalhaço feito por grupos de maritacas ou mesmo a bela imagem dos movimentos sincronizados do bater de asas do tucano.Mas, reinando neste pedaço de terra, estava ele com toda sua majestade. Um carniceiro, que vaga á procura de carcaças fétidas e nem por isso perde sua compostura imperial. O urubu-rei. Assim chamado tanto pela capa branca de penas que cobre todo seu dorso mas também pela forma dominante sobre outrosurubus, que agem como vassalos, chegando até a proteger a ninhada deste. E o que impressiona é o próprio voar desta ave. Característica de toda grande ave, a passividade. Não bate mais que três vezes as asas somente para alcançar altitude suficiente a abrir toda envergadura e começar a planar. Deixa com que as quentes massas de ar que sobem em movimento circular conduza esse planar, sustenta as asas o vento a se formar e subir. Pode planar por horas, alcançando as mais elevadas altitudes sem despender esforço algum. Eis uma ave com pendor ao vôo tranqüilo e demorado.Atesta-nos certas crenças indígenas que a transcendência era feita pela volta a terra na forma de um animal. É talvez pela intima ligação que tinham estas culturas pelos elementos da natureza, e pelo respeito e admiração que depositavam em todos os organismos. Quem dera reencarnar na forma de uma destas grandes aves, um condor ou urubu, e experimentar tal estado de contemplação do espaço por grande altitude. Passar uma vida a planar, apenas abrir as asas e deixar-se levar pelas correntes de lascivo vento. Passar a vida a voar, acima de toda e qualquer criatura. Voar.Um urubu, quem dera.
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