Viagem para o Fim
(Vitor Filipe)
Viagem para… o fim Nos últimos tempos a vida dele, com a subtil e gradual mudança de comportamento de Beth, foi-se tornando como um dia que fosse sempre noite, um céu sem estrelas. Como um corpo sem alma. Todavia, por defesa ou por cobardia, preferia imaginar que a relação afectiva não tinha mudado, embora com noção de que se estava a enganar a si próprio. Anos atrás, antes de a conhecer, ele sentia que vivia aridamente. Depois, a pouco e pouco, o deserto árido começou a florir. Mas agora, naquele momento, a sua alma se estava seca. Não conseguir chorar, não ter com quem partilhar a vida e estar só, terrível e assustadoramente só. Ela exigira naquela noite ficar sozinha no quarto deles. De facto o seu comportamento nas últimas horas, demonstrando uma completa indiferença para com ele ultrapassava os limites da civilidade. E, entretanto, aparentava uma fria calma. Ele acabara por ir para o quarto dos hóspedes, onde, numa das camas, o seu único e grande amigo, o seu “irmão”, como o considerava, dormia, ou fingia dormir pois nem o respirar se sentia. Duas da manhã e não conseguia dormir! Pensou que o melhor era regressar à cidade. Dolorosamente pressentia que nada mais o iria prender àquela casa, casa que ele considerava o seu Shangri-la! A casa de campo, como costumava dizer. No quarto ao lado ela dormiria já, sozinha como quisera. Procurou não fazer ruído saindo da cama cuidadosamente e, enfiando os pés nos chinelos, dirigiu-se para a porta do quarto e teve cuidado ao abri-la mas, mesmo assim, não conseguiu evitar algum ruído que o silêncio da noite ampliou; já no corredor limitou-se a encostá-la. Acabrunhado pela situação vivida nas últimas horas, vestiu-se rapidamente e preparou o saco de viagem, depois silenciosamente abriu a porta da rua sabendo que não ia poder evitar o barulho do trinco! Ao fazê-lo foi como fechasse para sempre toda a sua vida anterior. A muralha que há alguns meses tinha vindo a construir por protecção e para tentar aguentar as crises de relacionamento, por vezes mudas, acabara por ruir estrondosamente aquele fim-de-semana. Às escuras, inseguro, desceu as escadas e saiu para a rua a essa hora deserta. Entrou o carro e, então, toda a dor que se viera acumulando e o corroía ao longo dos últimos tempos rebentou em soluços incontrolados que convulsionando o arrasavam. Ligou o carro e, automaticamente, o leitor de CD começou a funcionar. Em tom lamentoso ouvia-se IL DIVO cantando “Unbreak my heart”. Lentamente o carro começou a rodar quando a chuva desabou com grande intensidade, chuva turvada pelas suas lágrimas... Ia guiando só quase por instinto. Então o telemóvel tocou e voltou a tocar. Pelo visor iluminado identificou o número e soube quem era, mas não atendeu, embora desejasse muito fazê-lo; Portanto, a sua saída de casa tinha sido notada apesar das precauções tomadas. Na mente dele, os pensamentos atropelavam-se mesclando-se com a letra da canção: “indiferencia, indiferencia, no quiero llorar, regresa a mi, indiferença, indiferença, regresa a mi, mi vida se apaga sin ti, regresa a mi…” Não aguentou mais, e, por brevíssimos instantes, fechou os olhos numa tentativa vã de expulsar tais palavras tão…______________________________ ___________________________ ____________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________________ Quando a equipa de socorro atingiu o fundo da ribanceira, onde ele jazia sem vida entre a amalgama de ferros retorcidos, no leitor de CD, roboticamente continuava a ouvir-se os IL DIVO, agora em: “I did it my way… I did it my way… I did it my way… vivi a mi manera… vivi a mi manera…”
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