CRONICA DE UM DIA
(José Paulo de Andrade Filho)
Despertar. Sonolento. Absorto em meu devanear, absorvi o resplendor da manhã em movimento. Cumprimentei o sol, entre as nuvens de súbita sombra; resgatei sua luz, entre as brumas nevoentas da manhã nebulosa. Auscultei o cortejar das aves, busquei o gorjear dos pássaros, tentei ouvir a música do mundo... deparei-me com a algazarra da multidão metálica regurgitando seus artifícios sonoros. A corrida tresloucada do dia recomeçara, o frenesi indômito recaíra sobre os homens despertos, a ganância jaz ressurrecta e as fábricas de ilusões realinharam suas máquinas, programadas na produção do impossível. Perpassando na mente de muitos, a ilusão do infortúnio; viva no estômago de milhares, a fome - ingrata maledicência das ânsias intestinais. Incólume na vida de muitos, as obrigações profissionais deliberadas; anuviada na vida da maioria, a expectativa afogada da esperança empregatícia. O dia começa trazendo contrastes, enquanto todos acreditam que, depois de uma noite de sono escuro, o sol chegará cego às indiferenças humanas. Nada há que justifique o desprazer ou que impeça o despertar da sensatez. Há os que bloqueiam seus despautérios e os que insistem em dizer que noite e dia são um só. Admoestado pelas insurgências matinais, rabisquei meus primeiros traços, retomando os bagaços das sobras passadas, nas diárias não consumidas pelas notícias advindas dessa noite escura que se desfez, na luz expoente da aurora. Ouvi o ronco selvagem da natureza gritando por sustento, retomei o trabalho manual da boca, que recicla o bruto em sutil para alimento. Distingui as horas céleres próximas ao momento do quase malfadado intento, nome pluralista: obrigações. Sobrenome de igual vicissitude: trabalhistas. Alinhei os parâmetros sociais, mentalmente refiz o perfil projetor do novo dia, para apresentações diversas, mesmo que sem fins produtivos. Há diversas razões pelas quais as indumentárias nos servem, e a maior delas é o prazer de retirá-las tão rápido quanto o pensamento da nudez. O dia segue uma jornada cega aos olhos mortais. Robustez significa aptidão, enquanto insensatez geralmente é confundida com sucesso moral. Liquidez se faz com perdas, enquanto lucro aumenta com cortes irracionais. Profissionais se formam amiúde, enquanto a fila do desemprego é ornada com as pérolas executivas e os braços da nação produtora de desigualdade. Escritórios apinhados, papéis acumulados, pendências exageradas, enquanto ruas se comprimem exigentes, abarrotadas de gente, diversas qualidades. Mas, o tempo requer "indicação" e "quem" melhor que os tratantes de negócios - que não entendem - para as provisões de incompreensíveis. Advém a dor com as pregas rompidas da intolerância e impaciência. O dia se desfaz aos poucos, aos olhos mortais, como uma lamparina que perde o seu fluído vital, esgotado pelo gasto incessante das horas "full time", isso quando o "full time" não se torna "extra hour", exonerando, o deliberante, de suas escolhas pessoais. "Non grata" não é a pessoa que se indispõe com o que não concorda, é o que discorda da pessoa que se dispõe, aquém do que a corda consegue suportar em sua sensatez mascarada de elucubrações racionais. Aos olhos imortais o dia prossegue sem sombra e sem claridade, sem admoestações e sem tenacidades. A inércia acompanha os passos do tempo, enquanto a eternidade dos objetivos humanos se perde nas esquinas de suas ambiciosas escolhas diárias. Não há recordações inusitadas, nem lembranças do que se passa mais além, a vida prossegue cansada, àqueles para quem a noite vem. Lavam o rosto da poluição externa, descarregando para dentro as sujeiras da alma. O corpo se fluidifica ao cair o sono e ao pesar os olhos, porém a alma encontrará no véu da noite escura, mais uma vez, os pesadelos intolerantes do espírito revolto pela mesmice inócua das diárias não remuneradas da existência. O ácido reduz o alimento à pasta, que será absorvida pelo intestino. Os rins purificarão a água que a garganta permitir passagem e o sangue que circula ao redor e por dentro das cavidades. Os pulmões filtrarão o pouco de ar puro que conseguimos aspirar. O coração bombeará o sangue aos milhares de quilômetros de veias em nosso corpo. O cérebro comandará as diversas terminações nervosas que se alongam até as extremidades mais longas das formas humanas. Enquanto isso, o pensamento soltará faíscas, a razão dedilhará seu rosário de provas, a emoção descarrilará seu dossel de inconformismo, os sentimentos se frustrarão em suas vãs esperanças, as paixões regurgitarão palavras de maldição e os amores não correspondidos desencadearão uma odisséia de dissabores clamorosos, infantis e dependentes. A escória já não será mais o resvalo dos perdedores de fortuna. Mas o suplício dos que não encontraram o equilíbrio vital para suas determinações pessoais, a forma de controlar seus impulsos mais egoístas, o jeito de organizar seu orgulho determinista e a maneira de sombrear a luminosidade exagerada que possuem ou de clarear as sombras intermináveis que permeiam caráteres e personalidades levianas. Pois que, todos acreditamos, ser passível de separação - a vida diária e a noite escura - das propostas, constantemente vívidas, do coração.
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