" O triunfo dos porcos" , com aspas
(Rafaela Plácido)
O dia amanhecera dourado na planície.O verão crescia a olhos vistos e, nos pastos, o verde teimava em ficar mais uns tempos, antes que o sol ressequisse também o vale onde o rio se assemelhava agora a um regato preguiçoso e indolente. Ao lado do moinho velho e abandonado, erguia-se aquele casarão cinzento, debruçado sobre as águas infectas pelo lodo malcheiroso que substituiu a brancura da farinha derramada em tempos pela pequena azenha. O lugar era o mesmo. As árvores haviam crescido e as pedras do rio estavam mais gastas pela força da corrente. O ditado, "água mole em pedra dura tanto dá até que fura", adquiria aqui todo o seu sentido. Só o aroma mudara. O perfume das madressilvas dera lugar a um cheiro nauseabundo e pestilento que inundava o ar a quilómetros de distância.Diziam uns:? Foi o progresso que conduziu a este estado de coisas e a estrada, aberta até ao vale, a grande culpada. Para outros, fôra a energia eléctrica, cujos postes passavam ao lado, que tinha dado o golpe de misericórdia na beleza e tranquilidade daquele sítio paradisíaco e sem outra coisa agora que não fossem as memórias de quem ainda o pudesse recordar belo, como outrora fôra.De qualquer modo, fosse como fosse, o mal estava feito e nada havia a fazer.
Sentado na sua camioneta de carga, o homem dirigia-se devagar para o rio, cumprindo mais uma rotina diária. No banco ao lado estava descuidado um molho de chaves, à espera que alguém as metesse na altura própria e na fechadura devida para o seu específico fim. Uma chave tem sempre verso e anverso, conforme os quereres de quem a usa.Ainda longe, orelha à escuta, o silêncio ouvia-se com acuidade e, no chão barrento, eram visíveis marcas recentes do rodado de um veículo pesado, que tivera necessidade de usar os pneus duplos traseiros para transportar sobre a lama algum peso.Mal constatou os vestígios no chão, do homem apoderavam-se as mais tenebrosas sensações e, mesmo sem se inteirar em concreto da situação, vislumbrou o que se tinha passado, quando o vale, agora silencioso como uma sepultura, se tinha debatido com uma invasão nocturna que alterara por completo a vida no lugarejo.Sentia, como se a ela tivesse assistido, a enorme gritaria daquelas criaturas, aquando da tormenta de que o seu abandono as tornara vítimas, enquanto a alma dele ia sendo invadida por um violento sentimento de remorso, sem saber muito bem se tal sensação tinha ou não razão de existir. No dia anterior deixara-as tranquilas no negrume da noite e à mercê dos predadores da planície. Todavia, no seu prato escorregava, dourada, aquela febra em vinho de alhos da hora do jantar, que lhe reconfortava o estômago e lhe mergulhava o cérebro num sono moribundo, e que agora o faziam lamentar-se profundamente por não ter sido mais premonitório, ao ponto de mudar o futuro dessa mesma noite. ? Como é que pude ser tão negligente? – perguntava-se. Os pensamentos iam-lhe aflorando à mente e os remorsos iam ficando mais violentos à medida que se aproximava. Além disso, era-lhe também difícil suportar a ideia de que aqueles seres tivessem sido sequestrados pelos brutos algozes, enquanto ele, prazerosamente, resfolegava nos lençóis brancos da cama lavada, tão diferentes do lodo existente no rio onde desaguavam os restos de tudo e de nada que lhes saíam por todos os buracos do corpo, como acontece com todos os vivos. De chaves na mão, o homem pegou na que se ajustava à fechadura do portão e abriu-o.Lá dentro, o vazio era absoluto e o que na véspera era uma orquestra de rec-rec estava agora transformado no mais aviltante silêncio, sem nada nem ninguém que lhe desse as boas-vindas, ainda que a sinfonia de vozes lá existentes sempre tivesse sido pouco harmoniosa.Do peito do homem saiu um dilacerante gemido e à sua boca acudiram dolorosas palavras de lamento:? Roubaram-me os porcos! Roubaram-me os porcos!O grito ecoou pelo vale como se de um rastilho de pólvor
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