Início de "O barqueiro de Paraty"
(Falkner; Odir Cunha)
Esperava ansioso, até que à direita surgiu, encravada na Serra do Mar, a pequena cidade de Paraibuna. Não a conheço, jamais a visitei, mas muitas vezes me imaginei vivendo em um lugar assim, quase um mundo à parte, uma espécie de Shangri-lá dos trópicos. Encostei a testa na janela do ônibus e divaguei. Impossível não recordar as muitas vezes em que passei por ali, descendo a Rodovia dos Tamoios com a família, em busca de uns dias de praia e sonho no Litoral Norte.
A fita rodava incansavelmente, enquanto eu, Vera, as crianças e dona Lúcia, a sogra, cantávamos bem alto: “Be-i, ce-i, cê, ele, é, tê, á, sou sua amiga bicicleta!”. Eu dirigia o Fiatzinho com um sorriso interior. Adorava estarmos juntos, apesar dos pequenos conflitos. Meu parâmetro de família era aquele: unidos, apesar das diferenças. Certamente àquela altura eu não imaginava que pudesse ficar sozinho.
A separação fez desmoronar um mundo que eu havia construído tijolo por tijolo. Quando ela aconteceu, senti-me o mais próximo que alguém pode se sentir da morte. Não há outra palavra. Naquele momento parecia, realmente, que eu tinha morrido. Aos 48 anos, não tinha forças para recomeçar.
Passei dias prostrado. Era comum deitar e ficar olhando o teto, sonhando acordado com o tempo que passou, remexendo as gavetas em busca de cartões, bilhetes e fotos de uma época em que eu era o orgulhoso provedor de uma família feliz.
“Papai, é assim que eu te vejo. Você é um cara engraçado. Amo muito você. Feliz dia dos pais!” – dizia o cartão de Diego. Acima de irregulares letras de forma, próprias de uma criança de oito anos, via-se uma colagem com o meu rosto sobre o corpo de um guitarrista de uma banda de rock. Não me cansava de contemplar esse cartão. Ele me lembrava que eu já tinha sido um pai que inspirava alegria e camaradagem.
Também assistia a vídeos antigos de viagens, da primeira comunhão de Diego e Natália, das festas de aniversário, das noites de Natal em família... Assistia e reassistia até altas horas da noite, chorava muito e ia pra cama de madrugada, extenuado pelas lembranças de um tempo que eu imaginava perdido para sempre.
Mas, se foi tão bom, por que esse tempo se perdeu? Bem, é uma pergunta que ainda não sei responder. Acho que o casamento começou a ruir com as pequenas desatenções, que descambam para a negligência, a indiferença, até que atingem o grau irreversível do desrespeito.
Eu e Vera entramos em um jogo masoquista em que nos agredíamos constantemente, mas, creio, sem perder a esperança de um final feliz. Porém, em determinado momento um dos lados perdeu essa esperança e percebeu que não valia a pena viver em permanente estado de angústia e desarmonia. Some a esta constatação orgulhos feridos e a sensação de que sempre é possível recomeçar, e terá as circunstâncias ideais para o divórcio.
Enquanto eu me recusava a admitir algum problema mais grave entre nós, Vera percebia imediatamente quando nosso casamento corria riscos. Nas duas vezes em que engravidou, por exemplo, ela me sentiu distante e falou sobre isso em longas cartas que deixava na cama antes de sair para o trabalho.
Não me lembro exatamente quais eram minhas atitudes àquela época, mas creio que no íntimo nunca tive qualquer dúvida de que as prioridades de minha vida eram ela e as crianças. Entretanto, eu deveria ter alguma dificuldade em expressar isso, pois se ela só conseguia abrir seu coração através de cartas, é evidente que tínhamos sérios problemas de comunicação.
Fico até constrangido de lembrar, mas a verdade é que aos 23 anos, idade em que fui pai pela primeira vez, imaginava que, se fizesse sexo na gravidez, poderia machucar o bebê. Assim, não transei com a Vera desde que soube que ela estava esperando o Diego, até o momento em que ela se recuperou do parto. Repeti o mesmo procedimento dois anos depois, quando Natália nasceu. Mas não era falta de carinho. Era apenas excesso de zelo. Ou ignorância mesmo.
Acredito, porém, que esse descuido foi superado, pois tenho ótimas lembranças das crianças nos acompanhando em viagens; em tardes alegres de piscina, tênis, corpos queimados e almoços no clube. Amigos daqueles tempos dizem que éramos o protótipo de uma família perfeita.
Paraibuna tinha ficado para trás. O ônibus que havia deixado a Rodoviária do Tietê, em São Paulo, às 12h15m, já se aproximava de Ubatuba, no pé da serra. Dali a três horas estaria em Paraty, onde Mauro, um amigo do colégio, prometeu me ensinar a “nascer de novo”. Poderia estar imaginando como seria esse renascimento, mas minha cabeça ainda se conservava no passado...
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