Trainspotting - Sem limites
()
Trainspotting, que na gíria escocesa significa “sem sentido”, foi traduzido no Brasil como “Sem limites”. Indica sutilmente que uma coisa é produto da outra: a falta de limites leva à falta de sentido. Nada é cobrado e nada é devido. A vida é vivida no concreto, nos picos diários de heroína que levam a um mundo subjetivo onde o desejo que deveria ser sonhado é substituído pelo terror da realidade sem nome nem palavras: o real na forma de alucinações. Por hipótese, como todo o mais deste texto: fuga da realidade, entrada no real.
Já que o roteiro tradicional emprego, estudos, casamento, filhos não serve, apela-se ao outro extremo, a auto-extinção. Será mesmo a única resposta? Antes mesmo do vício adentrar a vida de cada sujeito em questão no filme, a própria estrutura psíquica de cada um parece invadida pelo vazio existencial. Um vazio “sem limites”, que não foi requerido pela lei paterna e ao mesmo tempo é atormentado por um superego aterrador - percebido nas alucinações, em especial durante a crise de abstinência do protagonista.
A drogadição em Trainspotting, assim como em As invasões bárbaras (leia mais em “Opióides - Do declínio às invasões”, texto desta autora Maria_Truccolo, neste site), talvez seja a busca de um refúgio psíquico em contraponto à ausência de recursos psíquicos promovida pelo desamparo. Este tipo de desamparo diz respeito ao abandono pela falta de limites, de ter pelo que viver e até transgredir. Parece um desamparo provocado pela falta da falta, pelo excesso do nada. A drogadição, então, não se traduz aí pela transgressão da norma, porque a própria norma é fraca ou inexiste, o que se evidencia pelas soltas relações parentais. E também pela menção que se faz à Escócia, que se tornou "escória" por ter sido colonizada por incapazes, desautorizados de tal missão - assim como pais que não conseguem castrar seus filhos e impor certa ordem, limite, sentido. O que parece transgressão dentro da família tradicional, em que constam pai, mãe, filho ou filha à mesa do café da manhã partilhada inclusive por eventuais parceiros sexuais de filhos(as) até de menor idade, se revela como perversão. A mesma perversidade é mostrada de forma não mais violenta, mas muito menos sutil pelo marginal brutal que se impõe como “pai” dos adictos nas ruas. Um sujeito que resolve tudo no concreto, sem palavras, massacrando a socos, pontapés e cacos de vidro quem se opuser a suas vontades e necessidades. Um sujeito que prega a boa convivência e se diz bom, pois sabe da lei, mas a nega, impondo sua própria lei o tempo todo.
Ou seja, é como se, em busca de referências, os jovens encontrassem na rua o mesmo que têm dentro de casa. E aí a velha acusação de que os filhos foram influenciados pelas más companhias cai num abismo tão profundo quanto o proporcionado pelo uso da heroína - e outras drogas que não foram abordadas no filme. Vamos combinar, em tal contexto parecem todos mais ou menos usuários de heroína, meio anestesiados pela insuportável falta de sentido - pra sentir é preciso usar heroína, trocadilho infeliz: círculo vicioso. Talvez o que os adictos busquem seja a interdição, a frustração, a castração. Não a tiveram pelos meios normais, culturais, então frustram-se eles mesmos (e a seus pais), pelo uso da heroína, que os castra totalmente, inabilitando-os a qualquer outra coisa na vida que não seja o transe profundo ou, quando em vigília, o planejamento de meios (muitas vezes criminosos) para conseguir mais droga.
Os pais da moçada adicta conservam a estrutura material da família tradicional, mas sem o atravessamento da estrutura psíquica neurotizante. Está tudo solto, sem limites, sem contornos. Cada um faz o que quer, como se fosse uma crítica ao “liberou geral” (de "O declínio do império americano", que precede e explica o que acontecerá em "As invasões bárbaras"), que mal interpretado parece isso mesmo, uma liberdade sem sentido. E o espanto se dá só de fora para dentro, quando um filho em overdose vai parar em estado de coma numa emergência de hospital, por exemplo.
Entra em cena, então, o encarceramento do filho em seu quarto, para que passe pela crise de abstinência, e talvez assim consiga livrar-se da heroína - conforme o desejo dos pais; não dele mesmo. Ou seria a heroína livrar-se dele, um necessitado, quase mendicante? De qualquer forma, novamente os pais tentam resolver a questão da castração, da frustração e do limite pela via material, concreta, sem suspeitar de que o amparo afetivo ao filho, com todo o trabalho e alto custo emocional que isto requer de todas as partes, seja mesmo o santo remédio contra as drogas - inclusive as tarjadas de preto e socialmente aceitas. Talvez a partir daí se pudesse ao menos nomear e dar sentido à solidão, à desesperança e à dor.
Resumos Relacionados
- Mal-estar Na Atualidade E As Novas Formas De Subjetivação
- Opióides - Do Declínio às Invasões
- Os Filhos Da Mãe
- Hipóteses Para O Amor E A Verdade
- Sujeito Adolescente Na Contemporaneidade
|
|