O físico Max Planct costuma dizer que se ele fosse capaz de formular seus complexos problemas de física quântica em uma linguagem acessível às crianças, estas seriam capazes de apresentar imediatamente uma resposta precisa; as crianças, concluía ele, possuem uma percepção extra-sensorial que nós, adultos, parecemos ter perdido na aurora da juventude. Não duvidamos desta percepção extra-sensorial - as crianças são seres metafísicos, já dizia o velho Gilles Deleuze -, embora tenhamos também a percepção extra-sensorial de haver este grande físico cometido um pequeno equívoco, quântico como as suas partículas, mas tão implicado na imagem do pensamento como tais partículas na configuração do universo. Qualquer problema em física, lógica, ou qualquer outra disciplina arrasta em sua formulação, como matéria de expressão, as suas próprias respostas, tão exatas quanto a natureza do problema possa ser. Formular um problema de maneira que uma criança possa resolver já é dar uma resposta, assim como a velocidade de um móvel já se encontra virtualmente dada na razão do tempo e da aceleração contidos na fórmula conforme os velhos quesitos colegiais. Max Planct nao estava sozinho nesta ilusão de grandes sombras sobre a Historia da Filosofia: valorizar as respostas em detrimento da arte de pôr os problemas; uma ilusão que Platão já combatia quando, para ilustrar a sua teoria da reminiscência, nos apresenta Sócrates pondo problemas de geometria ao escravo Mênon. Sua intenção era mostrar que o escravo, na sua completa ignorância, era capaz de resolver as questões por já possuir, inatas em sua alma, as respostas e o saber esquecidos no trauma do nascimento. Sócrates formulava as questões com tanta precisão que nem era preciso ter alma ou percepções extra-sensoriais para deduzir as respostas...
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Um dos hábitos mais característicos dos filósofos é a denúncia da História da Filosofia como a história de um longo erro. Talvez Hegel tenha sido o único a legitimar a filosofia inteira como um processo que encontraria nele, Hegel, o sentido e a verdade como a última peça de um quebra-cabeça, mas esse filósofo era muito vaidoso e lisonjeiro (como distingui-lo de um galhofeiro?). O erro aqui denunciado pode não ser o mais comprometedor mas, ao multiplicar os equívocos da filosofia, fortalece a tese de um caminho mal escolhido, um
cul de sac como diria os franceses. O erro começa quando Sócrates abandona o estudo da natureza e volta-se para a subjetividade, a dimensão moral e para o mundo das idéias supra-sensíveis. A compleição do homem, de todos os seus órgãos e faculdades é orientada para a exterioridade, para uma entourrage de estímulos em que vivemos mergulhados e os desvios subjetivos propostos pelos filósofos soam-nos como aberrações de uma gramática licenciosa. A percepção, por exemplo, para ficarmos no plano mais elementar, não possui nenhuma razão de ser isolada do mundo que nos rodeia e ampliá-la ao máximo, ver cada vez mais, com sagacidade e sutileza, é a única via adequada para a gênese de novos conceitos. Assim se posicionavam os filósofos de um tempo imaculado, os pré-socráticos, cujas vidas legendárias confundem-se com as iniciações de um visionário. Ver a água, o fogo, a terra e o ar em todas as coisas era antes uma questão de percepção (Physis) e só mais tarde um conceito (Nous). Anaxímenes, por exemplo, dizia ser os reflexos da luz na água centelhas de um fogo original. Este fogo, como todos os elementos, coalescem no íntimo dos rios, lagos e cachoeiras; quando a água se evapora, este fogo sobe gerando a lua, o sol e as estrelas. Apesar de ter invertido o eixo do fenômeno, o que Anaxímenes pensou e viu fora uma linha contínua ligando os reflexos na água e as longínquas estrelas. Submissa às exigências da utilidade, a nossa percepção ordinária recorta e solidifica o mundo mas é sabido que todas as imagens do universo agem e reagem entre si, emtodas as suas partes e em todos os sentidos. Este mundo original e resplandecente visto por Anaxímenes e que encontra em Henri Bergson uma ressonância de profunda beleza, parece ter se perdido sob o nebuloso véu da filosofia moral por Sócrates inaugurada.
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