Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática (em A Paz Perpétua...) - III
(Kant)
O fim e o sentimento moral. “Talvez nunca um homem tenha cumprido de um modo totalmente desinteressado (sem mistura de outros móbiles) o seu dever conhecido e por ele venerado; talvez ninguém chegue tão longe, mesmo com o maior esforço.”
Nunca se deve retirar um excerto de um texto filosófico (ou outro) e interpretá-lo sem ter em conta o contexto em que foi afirmado. No entanto, é realmente sedutor fazê-lo, de vez em quando, para suportar um determinado ponto de vista ou para arrematar um alinhavo mais ou menos descosido do nosso raciocínio. Este caso é sintomático do risco do tropeção. É que, ao ler este excerto do texto kantiano, isoladamente, ficamos com a sensação do abismo aos nossos pés. A proposta de Kant parece utópica demais, face as estas declarações, bem mais realistas. O dever moral é uma pena insuportável; fiquemo-nos, propõem os comentadores contemporâneos de Kant, pelo dever jurídico (e pela obediência cega).
Mas o argumento kantiano para a prossecução da necessária tarefa de moralização da humanidade não vem da complexidade da dificuldade extrema, mas da simplicidade fácil da intuição pura (a tal vontade desinteressada). E da parte de quem? De uma criança:
“Seja, por exemplo, este caso: alguém tem nas suas mãos um bem que outrem lhe confiou ( depositum ), o seu proprietário morreu e os seus herdeiros nada disso sabem nem podem saber. Apresente-se este caso a uma criança de oito ou nove anos; e acrescente-se ao mesmo tempo que o detentor do depósito, surpreendido justamente nesse tempo (sem culpa sua) com a ruína total da sua fortuna, se vê rodeado de uma família, mulher e filhos, triste e esmagada pela miséria, e que poderia instantaneamente sair de tal indigência se ele se apropriasse daquele depósito; acrescente-se ainda que ele é filantropo e caritativo, ao passo que os herdeiros são ricos duros e, alem disso, faustosos e perdulários, a tal ponto que era como se ao mar se lançasse este suplemento à sua fortuna. E pergunte-se então se, nestas circunstâncias, se pode ter como permitido o uso do depósito em proveito próprio. Sem dúvida, a criança interrogada responderá: não! E em vez de todas as razões, poderá apenas dizer, é injusto, isto é, opõe-se ao dever.”
Existe um sentimento moral no homem, mais claro e mais simples que a tendência para a busca de felicidade. Ao guiar-se por ele, o homem torna-se digno de si, e mais feliz, porque mais digno. Ao encontrar na criança esta moralidade espontânea, Kant apela à relevância desse dado, como uma questão premente na moralização da sociedade: "(…) Se, no ensino privado e público, se transformasse em princípio fazer assim dela uso constante (um método de inculcar os deveres que quase sempre se descurou), a moralidade dos homens bem depressa haveria de melhorar.”
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