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O Cura
(Meister)

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O CURA Cap.I O BARBEIRO DE SERRILHA Era o barbeiro mais famoso de todo o Ribatejo. Ganhara a redoma de “Barbeiro de Serrilha”, numa alusão em trocadilho à famosa ópera de Rossini, não por via da sua arte, mas sim por outra decorrente de, à época, caberem aos barbeiros as tarefas acometidas aos cirurgiões da cidade. Últimos socorros das gentes da província, isoladas e entregues a si próprias, os barbeiros usavam com destreza a navalha, qual rude bisturi, a par do alicate tira-dentes e serras de improviso com que decepavam os membros corroídos pela gangrena. Corria o ano de 1840 e por cá reinava um rei alemão, D. Fernando II, que iria reconstruir em Sintra o mais esotérico dos palácios portugueses. O Inverno passara gélido e sem chuva e as colheitas ribatejanas, destruídas pela geada, lançavam os já miseráveis agricultores no desespero de mais um ano à fome. Para estes, a vida tornara-se um inferno: se não era da seca, era das cheias, quando não era a corrosão da geada. No final, dizimando o pouco que a terra lhes não tinha roubado, surgia a maldita praga régia albardando as mulas com o dízimo Real. Era esta a vida de camponês e era no meio desta que o “Barbeiro de Serrilha” ganhava a sua, arrancando, cortando e serrando, com a mesma destreza com que fazia barbas de quinze dias. Mas o barbeiro conhecia um terrível segredo que a ninguém podia desvendar. Uns meses antes, fora chamado de recurso à Quinta S. João, propriedade do Barão de Vila Nova, após uma queda de cavalo que o vitimara numa caçada à raposa. Ao chegar, deparara-se com o nobiliárquico esparramado na cama, revirando os olhos sem horizonte e com o pescoço mais torcido que o cordame de uma nau. Ao lado, a baronesa em título, esvaía-se em prantos antevendo as consequências das leis hereditárias que a iriam despojar de tudo em favor do filho maior e da odiosa nora com quem aquele casara. Dali em diante, acabaria às sopas caridosas daquela megera que dominava o espírito fraco do seu primogénito descendente. Por entre prantos e ladainhas, e a chegada do cura para a extrema-unção, o cirurgião improvisado deitava o seu olho clínico à vítima. À primeira vista, parecia-lhe como a todos: não tinha reacção; apenas estertores e a morte não tardaria. Arrimando à porta do quarto, o filho varão, D. Nuno de Vila Nova, ocultava a custo o esgar de satisfação pela prematura sorte que lhe parecia ir a bater à porta. Por detrás, a megera, com ar contrito e já enlutada por sobre uma camisa escarlate oculta e bem reveladora do seu estado de alma, zurzia ao olhar da sogra com um pesaroso enceno, baixando o olhar em seguida para não enfrentar as lágrimas de sáurio da antagonista. O seu tempo tinha, enfim, chegado. Naquela família tornada matriarcal por força da fraqueza dos homens, outra matriarca ditaria agora as regras, de baixo para cima. Com a atenção no sinistrado e o soslaio nas envolturas familiares, o barbeiro apercebia-se subitamente de algo que primeiro o intrigava e depois o fazia estremecer: um golpe incisivo na base do crânio do Barão que mais parecia causado por um dos seus bisturis afamados do que por uma qualquer pancada no chão ou mesmo numa pedra, por mais aguda que fosse. Ambas fariam uma mossa que até os seus rudimentares conhecimentos bem distinguiriam de um corte acutilante. E a intriga trazia-lhe à questão uma outra que não entendia: porque o tinham chamado a ele e não um verdadeiro cirurgião, como era apanágio de gente abastada? Tentando entender, ainda perguntou, recebendo em coro as explicações de todos os presentes, cada um com a sua: que era longe, que tardaria, que viria entretanto, que logo se chamaria... Se assim o queriam, pensou por entre o lisonjeado e o incrédulo, então que se prosseguisse a demanda de um paliativo para os males do moribundo. Sugerindo aos circunstantes que abandonassem a câmara a fim de desafoguear o ambiente, pedia que ficasse apenas o cura a pretexto de acautelar o derradeiro sacramento. O seu fitoera, no entanto, outro: a quem contar o que pensava que não a um padre? Anuindo à sugestão, saiu a viúva por uma porta lateral que dava para os seus aposentos privados, há muito separados dos do marido, e os restantes pela da frente, aguardando numa chaise longue que ornava o corredor de acesso aos principais quartos da casa. A sós com o cura, falou-lhe ao ouvido desconfiando até do maciço das portas. Em seguida, pegou a mão deste e, ante um eclesiástico arrepio, fê-lo sentir a chaga, que era coisa em que o mesmo devia ser versado, pelo menos em teoria. O cura recuou. Atónito, deitava olhares de sufoco ao barbeiro como quem já se tinha arrependido de ali ter chegado. Estaria ele certo?, interrogava em tom de confessionário. Ambos eram agora depositários de um segredo que não tinham buscado e que um, por dever de consciência e o outro por medo da mesma, se não podiam atrever a comentar. Nisto, o Barão tinha um estertor e suspirava para a eternidade. Coube ao cura fechar-lhe os olhos esbugalhados e chamar a família a cada uma das portas. (cont.)



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