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O Cuequinhas
(Aniceto Ferreira de Carvalho)

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mais ou menos pelo princípio da Primavera que um camarada de outra camarata me presenteou com uma caixa de sapatos, no fundo da qual buliam umas coisinhas pequeninas e pretas.
Eram bichos-da-seda, explicou ele.
- Bichos-da-seda? - Protestei. - Um bicho-da-seda é uma lagarta do tamanho de um dedo... Isto são cagadelas de um bicho qualquer... Só que mexem.
- Tudo o que nasce, nasce pequenino – filosofou o meu interlocutor.
O meu frágil coração estremeceu. Dali à amoreira, na Casa Branca, eram dois quilómetros; com o regresso, eram quatro. Mas que importância tinha isso por uma louvável acção?...
Trouxe duas folhinhas, das mais tenras. Devia chegar aí para uma semana. Aquelas ínfimas criaturas nem comeriam. Era só um descargo de consciência.
Na manhã seguinte deitaria aquilo fora. Fechei a caixa, guardei-a no armário.
Fiquei banzado. Aqueles seres microscópicos, que, “se calhar nem comiam”, nem as nervuras das folhas tinham deixado.
“É o que faz a fome...”, pensei eu. “Com dose reforçada, deve passar”. Mas não passou. Umas semanas depois eram três caixas, logo a seguir, todo o espaço que restava no armário tinha desaparecido. Tive de tomar medidas.
A esquadra tinha mudado de instalações. Com as recomendações do costume, fomos estrear um anexo no outro extremo do hangar, uma secção ampla, bem arejada, decorada a rigor com tudo o que de melhor nos deixaram surripiar das secções vizinhas. Na antiga secção ficaram os consumíveis, o material de manutenção, que podia sujar as novas instalações.
Exposto o drama ao Bragança, ele concluiu que “não tinha jeito nenhum deixar morrer à fome os bichinhos”... Esclareceu: “Desde que sejas tu a dar-lhes de comer, também não faz diferença um caixote a mais ou menos na secção”.
Eu tinha feito mal os cálculos: Tinha-me escapado que os “bichinhos” aumentavam aí umas mil vezes de tamanho, que o que me parecera ser uma centena de minúsculas pontas de alfinete ondulantes, eram, afinal, milhares de máquinas trituradoras, para as quais, um saco de folhas de amoreira por dia nem sequer chegava a passar duma dieta frugal.
Como a “obrigação” começava a ultrapassar os meus limites de resistência e tolerância, tomei uma iniciativa:
- O melhor era meter a bicharada numa caixa mais pequena e pendurá-la num galho da amoreira... pelo menos, lá, podiam empanturrar-se à vontade.
O Vilela que nunca ligara importância nenhuma àquilo, nem com um simples olhar de esguelha, pôs-se ao alto. Por certo, porque não queria perder o hilariante espectáculo de me ver todas as manhãs de saca às costas, sentenciou:
- Não senhor!... Isso é uma barbaridade... Os pobrezinhos vão sucumbir todos à intempérie... os que sobreviverem, serão comidos pelos pássaros.
Todos concordaram. Já agora, queriam ver a “fábrica da seda” em laboração. O sargento Rosa considerou uma almoçarada com o produto final da produção.
A Primavera veio em meu auxílio na forma de três novelos de penugem negra que encontrei nos pequenos pinheiros mansos próximo da Casa Branca. Criar melros a partir duma semana antes de deixarem o ninho era o que eu melhor sabia fazer: Bastava apontar-lhe o dedo ao bico e deixar-lhe cair na goela escancarada um naco de pão embebido em água.
Para que não me complicassem a vida a procurá-los nos incontáveis esconderijos da secção, instalei-os numa gaiola feita dum caixote, mostrei-lhes a abundância que fervilhava.
Não me pareceram muito estimulados. Bichos-da-seda, pelos vistos, não era dieta que apreciassem muito. Os meus anos de austeridade militar, todavia, falaram mais alto: Eu também comia o que me davam… tinham de colaborar comigo. As iguarias ficavam para melhores tempos.
Nestas coisas da natureza, porém, seja qual for a espécie, nem todos têm o mesmo arcaboiço: Um deles, o “caga no ninho”, foi-se abaixo em poucos dias; o segundo, ainda resistiu uma temporada… por fim, desistiu de viver; o mais resistente dos três tinha “estômago” de militar… aguentava tudo.
Quando os trituradores de folhas de amoreira decidiram a amodorrar, já o meu precioso auxiliar esvoaçava por todo o lado quando eu tomava as devidas precauções. Estava na altura de o recompensar: Melhorei-lhe o “palacete”, comprei-lhe uma caixa de ração apropriada, levei-o para as novas instalações.
Chamámos-lhe “Cuequinhas”: em “honra” de um castiço cabo especialista que, já em plena época do “slip” – que era muito mais aconchegadinho e dava outro sainete – ainda desfilava na camarata com umas velhas cuecas da tropa de pano cru que lhe chegavam a meio das canelas escanzeladas.
O “Cuequinhas” passou a ser a mascote.
Ensinaram-me a seguir que devia meter os casulos em água a ferver antes das borboletas saírem. Assim fiz. Levei no entanto tão à risca os ensinamentos que uns dias mais tarde até nos distantes gabinetes do comando havia borboletas atracadas umas às outras.
- Pelo menos tiveram um final de vida feliz – observou o Vilela, a morder-se de inveja, com um brilho nos olhos.
Como era de esperar, toda a gente concordou.
O sargento Rosa teve de adiar a perspectiva da almoçarada com o produto da venda da seda para melhor ocasião.
A uma distracção na secção, o “Cuequinhas” fugiu em meados de 1960. Entrou na primeira janela que encontrou aberta: na oficina de pintura. O António pintor tomou conta dele com todo o desvelo. Morreu de velhice, ao que parece feliz, próximo dos finais de 1964, um pouco antes do meu regresso da primeira comissão de serviço no Ultramar.



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