A Cidade E As Serras - 3 Prt
(anabordin)
Primeiros desencantos Zé Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas atividades o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização. Nos raros momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido desencanto. Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de ânimo de Jacinto: o rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o quarto, inundando os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas, alguns inclusive com um riso sarcástico, com o do Grao-Duque Casimiro, dizendo que não mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de salvação. As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque, jacinto já não agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o uso dos diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o microfone... O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e os convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou não indo para a mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião. Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um camarada não o comoviam, como muito remotas, inatingíveis, separadas da sua sensibilidade por imensas camadas de algodão. Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão brava mente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a força e a matéria! Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que espantou o narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que era acometido: o patrão sofria de "fartura". Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil. Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada! se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramos de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta... Raramente (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos. Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as sua convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigos dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço turado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos! Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento! Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem cinzenta e fria, motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo 202, com todas as suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade não passava de uma ilusão.
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