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Língua do Negro da Costa
(Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior)

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Na cidade de Bom Despacho temos uma comunidade de afro-descendentes, no Bairro Tabatinga, onde reside Maria Joaquina da Silva, conhecida como “Fiotinha”, última falante de uma língua (predominantemente banto) que funcionava como espécie de código secreto para preservação de troca de informações entre o grupo.
“Fiotinha” teve um papel destacado na preservação da “gira” da Tabatinga ao dar depoimentos a Sônia Queiroz, professora de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG, mestre em Letras pela mesma Universidade e doutora pela PUC/São Paulo, natural de Bom Despacho, quando da realização de sua obra “Pé Preto no Barro Branco”, que aborda a constituição da Língua do Negro da Costa.
Consideramos este trabalho pioneiro no que se refere a uma sala de conversação em língua de afro-descendentes e de suma importância para a preservação da cultura negra local, como também com uma grande viabilidade dentro da pesquisa em História Oral, definida aqui com beleza por Fiotinha: “Não tenho a letra, só tenho a palavra”.
Maria Joaquina da Silva, “Fiotinha”, a grande mentora do projeto que aqui apresentamos. Filha de um dos falantes mais antigos da Língua do Negro da Costa, chamado Zé Caria (ou Zacaria) e Joaquina Caria. Teve apenas um irmão chamado Zé Baiano. “Fiotinha” teve seis filhos e seis netos e Zé Baiano, dois filhos e seis netos.
Uma delas é a “gíria” da Tabatinga. Corre por toda a cidade que existe esse vocabulário, muitos conhecem uma ou outra palavra, verifica-se interesse, mas trata-se de algo anedótico e intermitente. Devemos então notar o seguinte: Fiota fala de marcas, ou melhor, certas marcas falam nela. Uma é a dura história dos negros após o cativeiro. Notamos que Fiota referiu-se à vida de sua mãe, fundadora do bairro da Tabatinga onde atualmente ela mora, demonstrando saber que sua história começou antes de seu nascimento, com a história de seus pais. O “dialeto” da Tabatinga foi uma herança paterna, quem sabe a única. A mãe foi a responsável pela transmissão para a criança da língua herdada do pai. É curioso observar que o filho do sexo masculino negou a língua do pai, acolhida carinhosamente apenas pela filha. Fiota, apesar das dificuldades para garantir a sobrevivência e o analfabetismo, observou certo avanço histórico (“Hoje quem falar do preto, acho que o viriango caxa, né?” O que quer dizer: “Hoje quem falar do preto, acho que o policial prende, né?”) e permaneceu firme no desejo de recuperar a parte de suas tradições que foi apagada, no caso, o próprio nome do bairro, Tabatinga, substituído por Ana Rosa. O nome se reveste de uma importância que ressoou mesmo no livro já realizado sobre o bairro, de autoria de Sônia Queiroz: o título “Pé Preto no Barro Branco” é uma referência, ao mesmo tempo, ao barro existente na principal rua do atual bairro, amassado como o pé para fazer casebres, e à “gíria” em si, que se utiliza da língua portuguesa para inserir termos de origem africana, dando a entender, em sua própria estrutura, a presença da mestiçagem.

Ressaltemos que essas palavras trazem consigo uma história. Elas falam da resistência africana, apesar da violência, da marginalização, dos massacres dos resistentes nos quilombos. A presença da Língua do Negro da Costa em Bom Despacho subverte toda a história oficial da cidade, história essa que explicou que Bom Despacho foi fundada por três portugueses que fizeram uma promessa à chamada Nossa Senhora do Bom Despacho ou Nossa Senhora do Sol ao chegarem a uma das três colinas que constituem, ainda, o núcleo da cidade. A presença da “gira” da Tabatinga mostrou-nos que, antes de ser habitada por brancos portugueses, a região foi refúgio de negros fugidos das regiões de mineração situadas próximo a Belo Horizonte e Pitangui. Portanto, a “língua” seria um indício decisivo de que a cidade foi primeiramente um quilombo. Aliás, vale a pena frisar que a presença dos negros fugidos, neste período, motivou a chegada dos brancos portugueses, muitos dos quais, tendo vindono encalço dos quilombolas, resolveram, permanecer na região.
Trata-se de um exemplo de uma “língua” oral transmitindo palavras que minam, arruínam, põem abaixo uma versão que claramente foi a dos vencedores e a chamada história oficial. O mesmo recalque ou superposição da história das vítimas pelo nome dos mais poderosos verificou-se estar em ação ainda hoje, ao lembrarmos da entrevista acima: Fiota demonstrou estar sentida com a troca do nome “Tabatinga”, (que lembra a ela a luta de sua mãe, ex-escrava, junto aos pioneiros que construíram o bairro), pelo outro, “Ana Rosa”, nome de uma granja situada na região, ou, acrescentemos, “Nestlé”, nome da multinacional fabricante de chocolates, adotado por alguns do bairro, julgando que assim poderiam ficar livres da conotação pejorativa que tomou o termo “Tabatinga”, ou seja, que se veriam livres de sua própria história. Ora, mesmo um rico herdeiro de um milionário poderia entregar a outrem todos os seus bens, fazer voto de pobreza, mas não ficaria livre de sua história. Podemos perder todos nossos bens, trocar de nome ou de identidade, mas mesmo assim não deixamos de ter uma história, ainda que negada ou silenciada.



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