Relato De Um Certo Oriente
(Milton Hatoum)
Este é o relato da volta de uma mulher, após longos anos de ausência, à cidade de sua infância, Manaus, num diálogo com o irmão distante. História de um regresso à vida em família e ao mais íntimo, no fundo é uma complexa viagem da memória a uma ilha do passado, onde o destino do indivíduo se enlaça ao do grupo familiar na busca de si mesmo e do outro. Odisséia sem deuses ou maravilhas de uma pobre heroína desgarrada, cujo destino problemático tem seus fios no enredo de um romance, tramado com calma e sabedoria pela mão surpreendente de um jovem escritor. O romance é aqui uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir, no lugar das lembranças e vãos do esquecimento, a casa que se foi. Uma casa, um mundo. Um mundo até certo ponto único, exótico e enigmático em sua estranha poesia, mas capaz de se impor ao leitor com alto poder de convicção. Não se resiste ao fascínio dessa prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico: viagem encantatória por meandros de frases longas e límpidas, num ritmo de recorrências e remansos, de regresso à cidade ilhada pelo rio e a floresta amazônica, onde uma família de imigrantes libaneses, há muito ali radicada, vive seu drama de paixões contraditórias, de culpas e franjas de luto ao redor de mortes trágicas. A essa ilha familiar retorna a narrativa como a um ponto de recordações, aberto à atmosfera ambígua de um certo Oriente ? espaço flutuante onde velhas tradições religiosas e culturais vieram se misturar às margens da terra, com a aura do sagrado e o gosto sensual de coisas e palavras. A narração remonta ao passado por lances retrospectivos, pela voz da narradora em que se encaixam outras vozes num coral coeso, lembrando a tradição oral dos narradores orientais: caixa de surpresas, de que saltam as múltiplas faces das personagens, num jogo de sombra e silêncio, sob a luz ardente do Amazonas. Nela se guardam as hesitações e lacunas da memória, o que não se alcança do passado ? modo oblíquo de se deparar com os limites do conhecimento do outro e de si mesmo, enigma último do ser. Reino de figuras fugazes, mas fortes: Emir, que transita para a morte, levando nas mãos a misteriosa flor em que se cifra seu destino; o fotógrafo alemão Dorner, que capta com sua generosa atenção o final simbólico do suicida; o leitor calado e solitário da Parisiense, velho comerciante árabe, capaz de contar histórias parecidas às das Mil e uma noites; e a extraordinária Emilie, matriarca e matriz de toda a vida da casa, que traz aninhado no colo o novelo de história da família, origem e fim do enredo do romance. Como outros em nosso tempo, é este o relato de uma volta à casa já desfeita, reconstruída pelo esforço ascético de um observador de olhar penetrante, mas pudoroso, que recorda e imagina. História de uma busca impossível, o romance é ainda uma vez aqui a aventura do conhecimento que empreende o espírito quando se acabam os caminhos. É aí que começam as viagens da memória.
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