A Perfeição
(Eça de Queirós)
Eça de Queirós tem um conto em que aprimora seu instrumento de trabalho, a língua, embelezando-a, dando-lhe matizes de pureza – como diríamos? – eterna. Chama-se “A Perfeição” e é chatíssimo de ler. Dizemos: “É a beleza pela beleza, pô! Onde é que está a humanidade disso aí?” Está aí, a carga humana no que se escreve é o segredo. Pode ser qualquer reles subliteratura, se tiver a presença do humano, com sua cota de dor, de miséria, de sangue, será uma obra que valha a pena ler.
“A Perfeição” é a história de Ulisses depois da guerra de Tróia, quando já ficou oito anos prisioneiro dos amores de Calipso, angustiado porque não pode voltar para o filho Telêmaco e a sua Penélope que tece e destece a teia, esperando-o. Mercúrio, mensageiro dos deuses, trouxe a ordem para libertá-lo. Calipso não se conforma: nem se não o esperasse a mulher e o filho ansiosos, ele não deixaria tanta paz, doçura, abundância e beleza eterna?
É quando, depois de umas vinte páginas cansativas, o conto recebe a sua carga de sangue para animá-lo. Ulisses responde que já não suporta tanta doçura, paz e beleza imortal. Há oito anos as folhas das árvores não amarelecem e caem. O céu não se carregou de nuvens escuras, nem a borrasca fustigou a sua choupana. As flores são as mesmas que admirou na primeira manhã. Chega a odiar os lírios e as gaivotas por sua harmonia branca eterna. Ulisses tem saudade da morte.
Há oito anos não vê um tronco podre ou a carcaça de um bicho coberto de moscas. Há oito anos terríveis não vê o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento. Tem fome de ver um corpo arfando sob um fardo, bois puxando o arado sob o sol, homens que se injuriam ao se encontrar, uma mãe que chora, um aleijado mendigando. Há oito anos que não olha para uma sepultura. Está cansado de tanta serenidade sublime. Ulisses morre com saudade da morte.
Não quer ficar para toda a imortalidade na ilha perfeita, nos braços perfeitos de Calipso. O supremo mal está na perfeição, diz Ulisses. E fendeu o mar na sua jangada frágil, fugiu feliz para o trabalho, a tormenta e a miséria humana. A eternidade foi feita para os deuses. O homem quer a felicidade da condição humana, com toda a sua carga de miséria e dor. Somos feitos para sentir a transformação do nosso corpo, da natureza, até mesmo das idéias e da arte com que damos uma forma à nossa sensibilidade das coisas e dos seres.
O eterno a Deus pertence. O homem anseia por uma parcela dessa eternidade, teme pavorosamente o efêmero de tudo que existe, quer a permanência e não o pó, a sombra, o nada a que somos votados. Tem uma alma, que não perece. Não é apenas matéria putrescível, mas espírito com algo do sublime, do eterno que a Deus pertence.
Estranho falar em saudade da morte. Vamos nos cansar de viver? Vamos desejar a morte? Queremos viver gloriosamente a nossa condição humana, finita. Nada é para sempre: costumo dizer que sempre é muito tempo. Queremos o que permanece de tudo que se acaba. O resíduo além do finito. Se o corpo é matéria finita, o espírito independe dessa conjunção corporal para existir. Sentir a vida com todos os sentidos, depois dar adeus ao corpo, que fica. A própria saudade da morte – o conhecimento de nossa finitude – revela a grandeza da miséria humana, que leva o homem à certeza de que o espírito permanece.
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